A BIOLOGIA E A SEXOLOGIA ANTES DE FREUD WILHELM REICH PARAFRASES #2
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Nova York Novembro de 1940
A posição científica que acabo de esboçar tem as suas raízes no Seminário de Sexologia de Viena (1919 a 1922). Nenhum sistema e nenhuma opinião preconcebida dirigiram o desenvolvimento das minhas idéias. Alguns gostariam de argumentar que eu sou um homem que, por ter uma singular história pessoal de complexos, e por ter sido excluído da sociedade “respeitável”, quer impor as suas fantasias à vida alheia. Nada estaria mais longe da verdade. O fato é que uma juventude cheia de atividade e de experiência permite-me perceber e revelar dados, particularidades de pesquisa e resultados que permaneceram fechados para outros. Antes de me tornar membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, em outubro de 1920, eu adquirira extenso conhecimento no campo da sexologia e da psicologia, e também no campo da ciência natural e da filosofia natural. Parece falta de modéstia. Pois seja; a modéstia mal empregada não é uma virtude. Não havia qualquer mágica no caso. Intelectualmente faminto após quatro anos de inatividade na Primeira Grande Guerra, e dotado da faculdade de aprender rápida, completa e sistematicamente, mergulhei em tudo o que achei de interessante no meu caminho. Não perdi muito tempo à toa em cafés e soirées, nem o desperdicei em farras ou em tolices, aqui e ali, com os estudantes, meus companheiros. Foi por simples acaso que entrei em contato com a psicanálise. Durante uma conferência sobre anatomia em janeiro de 1919, alguém passou um folheto, que foi de carteira em carteira, e pedia aos estudantes interessados que organizassem um seminário de sexologia. Fui à primeira reunião. Havia uns oito jovens, estudantes de medicina. Dizia-se que um seminário de sexologia era necessário para os estudantes de medicina porque a Universidade de Viena estava negligenciando essa importante questão. Freqüentei regularmente o seminário, mas não tomei parte na discussão. A maneira como o tema foi tratado nas primeiras reuniões soou estranha para mim; faltava-lhe o tom da naturalidade. Havia algo em mim que a rejeitava. Uma das minhas notas de março de 1919 diz: “Talvez a moralidade com que o tema é tratado seja o que me perturba. Pela minha própria experiência, pelas observações feitas em mim mesmo e nos outros, cheguei à conclusão de que a, sexualidade é o centro em torno do qual gira a vida da sociedade como um todo, e também o mundo, intelectual interior do indivíduo (…)”. Por que me opus? Foi somente uns dez anos mais tarde que descobri a razão. Eu tinha experimentado a sexualidade de maneira diferente da que se discutia naquele curso. Havia algo de esquisito e de estranho quanto à sexualidade daquelas primeiras conferências. A sexualidade natural não parecia absolutamente existir; o inconsciente estava cheio apenas de instintos perversos. Por exemplo, a teoria psicanalítica negava a existência de um erotismo vaginal primário nas meninazinhas e atribuía a sexualidade feminina a uma complicada combinação de outros instintos. Houve uma sugestão de convidar um psicanalista mais velho para pronunciar uma série de conferências sobre a sexualidade. Falou bem, e o que disse foi interessante, mas eu sentia um desagrado instintivo pela maneira como tratava o tema. Ouvi muita coisa nova e me senti muito interessado mas, de certa forma, o conferencista não era digno do assunto. Eu nem seria capaz de dizer por quê Consegui alguns trabalhos sobre sexologia: Sexualleben unserer Zeit, de Bloch, Die sexuelle Frage, de Forel, Sexuelle Verirrungen, de Back, Hermaphroditismus und Zeugungsunfãhigkeit, de 18 Taruffi. Depois li Libido, de Jung e finalmente li Freud. Li muito, li depressa e de ponta a ponta: alguns dos trabalhos li duas ou três vezes. As Three Contributions to the Theory of Sex e as Introductory Lectures to Psychoanalysis, de Freud, decidiram a escolha da minha profissão. Separei imediatamente a literatura sexológica em dois grupos; um sério, e o outro “moralista e lascivo”. Eu estava entusiasmado a respeito de Bloch, Forel e Freud. Freud era uma extraordinária experiência intelectual. Não me tornei imediatamente um discípulo devotado de Freud. Assimilei gradualmente as suas descobertas, estudando ao mesmo tempo as idéias e descobertas de outros grandes homens. Antes de entregar-me inteiramente à psicanálise e de me atirar totalmente a ela, adquiri um conhecimento básico geral em ciência natural e em filosofia natural. Era o tema básico da sexualidade que me obrigava a empreender esses estudos. Estudei muito bem o Handbuch der Sexual-wissenschaft, de Moll. Queria saber o que os outras tinham a dizer sobre os instintos. Isso me levou a Semon. A sua teoria das “sensações mnemônicos” deu-me o que pensar sobre os problemas da memória e do instinto. Semon argumentava que os atos involuntários de todas as criaturas vivas consistem em “engramas”, i.e., em impressões históricas de experiências. O protoplasma, em eterna autoperpetuação, absorve continuamente impressões que, respondendo aos estímulos correspondentes, são “ecforizadas”. Essa teoria biológica se ajusta muito bem ao conceito das lembranças inconscientes de Freud, os “traços de Memória”. A pergunta — “Que é a vida?” — inspirava cada uma das minhas novas aquisições de conhecimento. A vida era marcada por uma notável nacionalidade e intencionalidade da ação instintiva e involuntária. As investigações de Forel na organização racional das formigas dirigiram a minha atenção para o problema do vitalismo. Entre 1919 e 1921, familiarizei-me com a Philosophie des Organischen e com a Ordnungslehre, de Driesch. Entendi o primeiro livro, mas não o segundo. Estava claro que a concepção mecanicista da vida, que dominava também os nossos estudos médicos, não podia oferecer uma explicação satisfatória. A argumentação de Driesch parecia-me incontestável. Ele afirmava que, na esfera do funcionamento vital, o todo podia desenvolver-se de uma parte, ao passo que, de um parafuso, não se podia fazer uma máquina. Mas, por outro lado, o seu emprego do conceito de “enteléquia” para a explicação do funcionamento vital não era convincente. Eu tinha a impressão de que um enorme problema fora evitado com uma só palavra. Assim, de maneira um tanto primitiva, aprendi a estabelecer uma distinção clara entre fatos, e teorias a respeito de fatos. Pensei muito nas três provas de Driesch do caráter específico totalmente diferente da matéria viva em oposição à matéria inorgânica. Eram provas bem fundamentadas. Entretanto, eu não podia aceitar o transcendentalismo do princípio da vida. Dezessete anos mais tarde, eu já estava apto a solucionar a contradição, com base em uma fórmula pertencente à função da energia. A teoria de Driesch estava presente no meu espírito sempre que eu pensava a respeito do vitalismo. A vaga impressão que tive da natureza irracional da sua hipótese acabou por justificar-se, no fim: Driesch tornou-se espírita. Tive mais sucesso com Bergson. Fiz um estudo muito cuidadoso dos seus Matter and Memory, Time and Freedom e Creative Evolution. Percebi instintivamente a exatidão dos seus esforços para refutar tanto o materialismo mecanicista como o “finalismo”. A explicação bergsoniana da percepção da duração temporal na experiência psíquica, e da unidade do ego confirmou as minhas próprias percepções íntimas da natureza não mecanística do organismo. Tudo isso era muito obscuro e vago — mais percepção que conhecimento. A minha atual teoria da identidade e da unidade do funcionamento psicofísico teve a sua origem no pensamento bergsoniano, e se tornou em uma nova teoria da relação funcional entre o corpo e a mente. Durante algum tempo, fui encarado como um “bergsoniano maluco”. Embora em principio eu concordasse com Bergson, não sabia como apontar a lacuna existente na sua teoria. O seu “élan vital” lembrava-me de perto a “enteléquia” de Driesch. O princípio de uma força criativa governando a vida não podia ser negado. Assim mesmo, não era satisfatório na medida em que não podia ser tocado, descrito e tratado objetivamente. A aplicabilidade prática era considerada, com justiça, a meta suprema da ciência natural. Os vitalistas pareceram-me sempre mais próximos de um entendimento do princípio essencial do que Os mecanicistas, que cortam a vida em pedaços antes de procurarem compreendê-la. Por outro lado, a idéia de que o organismo operava como uma máquina era intelectualmente mais acessível. Podiamse traçar paralelos considerando os elementos conhecidos no campo da física. Eu era um mecanicista no meu trabalho médico, e o meu pensamento tendia a ser ultrasistemático. Nos meus temas “pré-clínicos” interessava-se mais pela anatomia sistemática e topográfica. Eu dominava a anatomia do cérebro e todo o sistema nervoso. Estava fascinado pela complexidade dos feixes nervosos e da engenhosa disposição dos gânglios. Aprendi muito mais que o necessário para o grau médico. Ao mesmo tempo, entretanto, era arrastado para a metafísica. Apreciava o Geschichte des Materialismus de Lange por mostrar claramente a indispensabilidade da filosofia idealista da vida. Alguns dos meus colegas aborreciam-se com o meu “erraticismo” e “inconstância de pensamento”. Foi somente dezessete anos mais tarde, quando consegui solucionar praticamente a contradição existente entre mecanismo e vitalismo, que eu mesmo entendi essa atitude aparentemente confusa. É fácil pensar corretamente em campos conhecidos. É difícil, quando se está começando a andar às apalpadelas em terrenos desconhecidos, não ser intimidado pelo peso dos conceitos. Felizmente, não demorei muito a reconhecer que tinha o dom de lutar com uma profusão de pensamentos perturbados, e emergir com resultados práticos. Devo a invenção do orgonoscópio, através do qual podem ser vistos lampejos de energia biológica, a essa característica pessoal. A versatilidade dos meus interesses intelectuais faz-me pensar que “todo mundo de alguma forma está certo” — é apenas questão de saber “como”. Estudei dois ou três livros de história da filosofia, que me familiarizaram com a eterna controvérsia a respeito da precedência do corpo ou do espírito. Esses primeiros estágios do meu desenvolvimento científico foram importantes, porque me prepararam para a perfeita compreensão da teoria de Freud. Nos manuais de biologia, que não estudei senão depois do exame oral de biologia — cujo valor é muito questionável — encontrei um mundo rico, um sem-fim de elementos tão bons para uma ciência demonstrativa quanto para um sonho idealista. Mais tarde, os meus próprios problemas forçaram-me a estabelecer distinções mais claras entre o fato e a hipótese. O Allgemeine Biologie e o Das Werden der Organismen, de Hertwig, proporcionaram-me um conhecimento bem fundamentado, mas não conseguiram demonstrar a interrelação entre os vários ramos da ciência natural. Eu não diria isso assim, naquele tempo, mas de fato não fiquei satisfeito. Fiquei perturbado pela aplicação do “princípio teleológico” no campo da biologia. De acordo com esse princípio, a célula teria uma membrana para protegê-la contra os estímulos externos. A célula seminal masculina seria suficientemente ágil para ter facilidade maior de chegar até o óvulo feminino. Os animais machos seriam maiores e mais fortes que as fêmeas e também, freqüentemente mais coloridos para parecerem mais atraentes às fêmeas, ou seriam providos de chifres para serem mais capazes de lutar com os rivais. Argumentava-se mesmo que as formigas operárias eram assexuadas para poderem realizar melhor o seu trabalho. As andorinhas construíam os seus ninhos visando esquentar os filhotes, e a natureza organizava isto ou aquilo desta ou daquela maneira para satisfazer a este ou àquele propósito. Em suma, uma mistura de finalismo vitalista e materialismo causal imperava também no campo da biologia. Assisti às conferências muito interessantes de Kammerer sobre a sua teoria da hereditariedade dos caracteres adquiridos. Kammerer estava muito influenciado por Steinach, que se destacou a esse tempo com os seus grandes trabalhos sobre os tecidos intersticiais hormonais do aparelho genital. O efeito sobre os caracteres sexuais e sexuais secundários por meio dos experimentos de enxerto e a modificação da teoria mecanicista da hereditariedade, de Kammerer, causaram-me forte impressão. Kammerer era um defensor convicto da organização natural da vida, a partir da matéria inorgânica e da existência de uma energia biológica específica. Naturalmente, eu não tinha condições para emitir quaisquer julgamentos objetivos. Eu apenas sentia atração por essas idéias científicas: traziam vida à matéria que nos era secamente servida na Universidade. Ambos, Steinach e Kammerer, eram severamente combatidos. Uma vez marquei uma entrevista com Steinach. Quando o vi, tive a impressão de que estava cansado e abatido. Mais tarde, entendi melhor como se é cruelmente maltratado por causa de um bom trabalho científico. Kammerer cometeu, depois, suicídio. É muito fácil assumir uma posição de crítica violenta quando não se têm argumentos objetivos. Cruzei novamente com o “para” da biologia em diversas doutrinas de salvação. Li o Buddha de Grimm e fui surpreendido pela lógica interna da teoria do Nirvana, que rejeitava também o prazer porque este, inevitavelmente, acarretava o sofrimento. Achei ridícula a teoria da transmutação das almas, mas não pude explicar por que milhões de pessoas aderiam a semelhante crença. O medo da morte não poderia ser a explicação absoluta. Nunca li Rudolf Steiner, mas conheci muitos teósofos e antropossofistas. Todos eles tinham algo de peculiar; por outro lado, eram em geral mais fervorosos que os secos materialistas. Eles também deviam, de alguma forma, estar certos.