A imanência transcendental do fenômeno

Gap Filosófico [Decodex)
8 min readFeb 1, 2025

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Por Murillo Silva

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Desde muito tempo, talvez até imemorável, o ser humano vem discutindo sobre o conceito de verdade e mentira, ideal e real, inteligível e sensível, sujeito e objeto. Descartes fala de uma substância pensante (res cogitans) e uma substância extensa (res extensa), um sujeito que pensa e um objeto que é material, que possui extensão, medida.

Logo ele está falando de uma natureza interpretada relativa, dual, pois ao se utilizar do conceito de substância, está também se referindo a arché dos antigos gregos, uma substância única presente em todas as coisas. Veja que Descartes, apesar de citar 2 qualidades substanciais, ele não nega que tanto aquilo que pensa quanto aquilo que é pensado são substâncias, sendo então produtos fracionados de uma mesma natureza implícita. Semdo assim, quando ele atribui a qualidade de substância, tanto ao que pensa quanto ao que é pensado, esclarece também uma natureza oculta, terceira e absoluta, perfeita, de onde ele consegue tirar a própria ideia de perfeição, pois, sendo ele a substância que pensa, é imperfeito em si mesmo, e para que tivesse a ideia de perfeição, deveria ter recebido de alguma natureza perfeita.

A natureza dual que Descartes descreve com duas qualidades substanciais se tratam obviamente de duas polaridades opostas, dialéticas, que expressam uma terceira natureza oculta não substancial, mas ideal, eterna, imanifesta e inteligível, que ele chama de Deus. Esta interpretação da arché se trata claramente de uma derivação platônica, o que por sua vez já não é uma novidade na grécia antiga, isso porque a noção de separação dual da substância da realidade já está presente nos naturalistas como Tales de Mileto e em diferentes culturas, por exemplo, na taoista e a hindu que já falavam sobre a relatividade presente nas coisas, e também sobre uma natureza imanifesta, sem origem e sem destino, eterna, que é permanente em todas as diferentes manifestações duais presentes na natureza substancial.

Esta natureza perfeita e oculta que nunca se transforma, mas da qual tudo se deriva, também era pensada pelos gregos antigos como Parmênides que a chamava de apeiron. A realidade eterna e permanente, aquilo que é, sempre foi e sempre será. Enquanto isso, Heráclito falava sobre a impermanência que está presente em todas as coisas, se transformando sempre. Esta descrição de Heráclito se trata claramente da natureza substâncial e dual descrita por Descartes. Platão não perdeu a oportunidade de sintetizar através da dialética o pensamento de Parmênides e Heráclito em sua teoria das ideias, ao afirmar que existe um mundo sensível que é semelhante ao mundo de Heráclito e um inteligível semelhante ao mundo de Parmênides. Para platão, o mundo das ideias ou inteligível é um mundo eterno e imutável, pois se trata de um modelo latente de todas as manifestações no mundo sensível composto de cópias derivadas do mundo das ideias ou inteligível. É importante termos consciência de que o conceito de ideia que Platão usa não se trata de ideias imaginárias, mas se trata de formas gemométricas que são abstratas e imateriais, e por serem imateriais, não são substânciais, mas instâncias, eternas devido a sua relação com aquilo que Pitágoras chamava de tetraktys.

Atualmente, a academia apresenta os filósofos que surginam na história, como pacotes de opiniões diferentes, opostas e contraditórias, como se fossem fragmentos espalhandos sem uma relação harmônica de sistematização das diferentes polaridades da dialética. Por exemplo, ela nos apresenta os filósofos gregos como se fossem indivíduos que não compreendiam os conceitos apresentados uns aos outros, isolados em si mesmos e sem uma complementação entre si, e isso, mesmo sendo contemporâneos. Deixemos de lado esta fragmentação e vamos relacionar, não só os filósofos gregos, mas também todos os pensadores presentes em toda a extensão do tempo em sua transitoriedade, e assim como o rio de heráclito, nos transformar em busca daquilo que é perfeito e imutável, aquilo que é tanto origem quanto destino.

Descartes deixa claro que essa dualidade está presente na substância apenas, e que a natureza dual da substância, por sua vez, já é derivada de uma natureza perfeita da qual ele tira as ideias de perfeição que não estão nele, mas que vinham de Deus, uma natureza eterna, ideal. Ao afirmar isso, ele deixa claro implicitamente de que está falando das relações entre números e formas que ele traz em sua matemática, usando a mesma para alcançar certezas abstratas, dados racionais que não são apenas imaginação desconexa do real, mas ideias fixas que se expressam na substância material de forma relativa. Quando Descartes fala da possibilidade de evidência pela razão, ele está falando o mesmo que Platão ao afirmar que a verdade só pode ser alcançada pela contemplação das ideias inteligívels, através do raciocínio abstrato.

Descartes foi iniciado na fraternidade Rosa Cruz em um contexto iluminista, racionalista, onde o pensamento inteletual começa a transbordar culturalmente ao redor do mundo ocidental, derivado de tradições não só gregas, mas também hebréias, hindus, chinesas, e de toda parte do mundo, o que ocorreu naturalmente devido a expansão das grandes navegações pelos oceanos de diferentes povos, que apesar de não serem exclusivas daquele período, se proliferaram em uma quantidade gigantesca favorecendo a conversação de diferentes povos com suas diferentes culturas, gerando um efeito de síntese das mesmas. Ao escrever seus textos, Descartes fala de filosofia não apenas sob uma visão dualista como dizem muitos autores e comentaristas quando citam o pensamento cartesiano. Mas também se referia a natureza espiritual, logo, quando ele se refere a uma natureza divina não substancial, ele não está limitando a realidade em dualismos, mas está dizendo que é através da dialética da dualidade presente na manifestação do ideal no real, que é possível alcançar evidências racionais de uma realidade absoluta e não limitada a relatividade de sua manifestação, ou seja, uma realidade iminente. Sendo assim, ao chamar ele de dualista, os pensadores modernos cometem um equívoco, ou por imperícia ou por malícia, o que acaba contribuindo para uma fragmentação do conhecimento e dificultando a nossa compreensão sobre o que significa relativo e absoluto, assunto bastante discutido pelos pensadores orientais.

O próprio Espinosa fala sobre esta natureza dual da substância relativa e chama de: natureza naturada (efeito) e natureza naturante (causa). Ele também fala sobre uma terceira natureza absoluta que abrange tanto a natureza naturada quanto a natureza naturante, o que ele deve ter tirado da cabala que é uma das principais disciplinas estudadas pelos rosa cruzes da época de descartes. Espinosa, assim como Descartes, chama esta natureza absoluta de Deus ou Natureza.

Mas, será que as distorções presentes nos comentaristas atuais são mera ignorância ou ingenuidade da parte deles em relação ao pensamento filosófico ocidental? Ou será que existe algum motivo mais interessante para a prática de tais distorções daquilo que os pensadores escreveram com tanto trabalho e dedicação?

Ao ler os pensadores da modernidade e pós-modernidade, pude perceber que existe certa aversão, relutância em aceitar qualquer realidade que esteja além de seu controle, além de seu horizonte de ação, além de seu poder de modulação. Como se houvesse um medo, pavor, pânico de encarar aquilo que se chama verdade. Acabam simplesmente desistindo da missão de encontrar o Ser, não investigaram todo o cosmo, mas passam a crer na impossibilidade de compreensão do Ser em sua natureza verdadeira. Desistem da empreitada por considerá-la impossível. Este medo não se trata unicamente de ingenuidade ou falta de conhecimento do desconhecido, pois muitas vezes, esses mesmos comentaristas da modernidade que criticam os pensadores ortodoxos, têm plena consciência da existência de uma natureza absoluta e verdadeira, apesar das impressões da dualidade na matéria e sua relatividade. Mas, se eles têm consciência da verdade, porque então insistem em negá-la ou distorcê-la?

Se todos os fenômenos são derivados de uma instância latente, eterna, então a nossa originalidade depende da mesma enquanto nos manifestamos ou agimos. Sendo assim, quando nos perdemos desta origem, quando nos afastamos dela a ponto da mesma se ocultar de nossa consciência, perdemos então a autonomia em nossas escolhas e ações, pois perdemos a semente da qual viemos. Ao nos afastarmos desta nossa natureza original, perdemos o nosso aspecto de causa (natureza naturante) e nos limitamos ao aspecto de efeito (natureza naturada), o que é conveniente a quem deseja assumir esse papel por nós tomando controle de nosso corpo objetivo e se beneficiando dele como uma extensão de si. Esta prática pode ser entendida como a objetificação do ser, o que caracteriza exatamente como escravidão do corpo pela alienação da alma. Quem se beneficia da escravidão quer que as pessoas permaneçam ignorantes do espírito, ignorantes de sua origem eterna, e assim se tornem meros fragmentos objetivos, instrumentos manipuláveis nas mãos daqueles que se mantêm cônscios de sua origem espiritual. Muitos pensadores já escreveram sobre este problema como, por exemplo, Nietzsche em Genealogia da Moral e Hegel em Fenomenologia do Espírito. Essa terceira natureza absoluta é o terceiro olho rejeitado pelos mesmos que rejeitam o pensamento cartesiano, ou por não entenderem ou por entenderem e não querer que se propague o conhecimento do espírito (sopro) derivado do absoluto que move a matéria assim como o magnetismo move os metais.

Esse conhecimento nos leva a tomar consciência de nossa natureza divina, absoluta, e quem se beneficia com a escravidão não quer que as pessoas tomem consciência da natureza original. Por isso também insistem em dizer que Marx não é compatível com Hegel, o que também é falso, pois o pensamento de ambos é perfeitamente compatível. Enquanto um investiga a dialética do espírito, o outro investiga a dialética da matéria.

Marx não nega a teoria hegeliana da dialética do espírito, na verdade ele a complementa ao se especializar no aspecto material desta dialética entre matéria e espírito. A própria rosa na cruz, como símbolo, se trata de uma terceira dimensão no cruzamento entre duas relativas representadas pelas hastes cruzadas. A haste vertical é uma natureza naturante e a haste horizontal é uma natureza naturada, e a rosa no centro é a simetria entre ambas, uma terceira dimensão ou síntese da dualidade anterior. A rosa como uma flor que desabrocha da síntese de opostos assim como uma criança nasce da relação sexual entre macho e fêmea.

É essencial entender isso para entender descartes, pois faz parte do contexto dele, da forma de pensar que ele desenvolveu com base em suas experiências pessoais em relação com as pessoas e organizações de sua época.

A manifestação do Espírito, em grego pneuma, em alemão geist, passa pela semente, pela planta e pelo fruto, que por sua vez, gera novas sementes.O que caracteriza a manifestação cíclica do desenvolvimento do fenômeno percebido pela consciência. Não só as árvores, mas todos os seres vivos possuem o mesmo ciclo latente de reprodução e evolução. Qual deles é o verdadeiro ser da planta, a semente, a árvore ou o fruto?

Este símbolo também se expressa em diferentes signos como, por exemplo, a trindade cristã, a deusa Hekate grega de três faces, os tridentes de Shiva e Exu. O verdadeiro Ser é o espírito latente do qual tanto a semente, quanto a planta, quanto o fruto se manifestam em ciclos de derivação constante. Para Platão, se trata da idéia da planta, para Descartes, a natureza oculta ou Deus assim como para Espinosa que a chama de natureza naturante.

Assim como a deusa Hekate com seu aspecto de jovem, a mãe e a anciã, que são as diferentes fases da mulher, também a trindade pai, mãe e filhos. O espírito por traz da manifestação é o Ser verdadeiro por traz da aparência. As diferentes fases de manifestação do ser são apenas aparências transitórias, do grego, phenomenum, fases temporárias do verdadeiro ser que é eterno imutável. Seguindo essa lógica, os corpos (res extensa) são apenas vestes, aparências temporárias de manifestação da verdade permanente. Logo, o próprio conceito de nascer e morrer se torna algo a ser pensado e refletido com maior racionalidade do que nossas fulgurais emoções nos imputam. Ou seja, ilusões de Lúcifer. Por enquanto vamos parar por aqui, pois o assunto é complexo e infinito.

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