A NECESSIDADE ONTOLÓGICA — Theodor Adorno — Paráfrases #5

Gap Filosófico [Decodex)
4 min readApr 10, 2023

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As ontologias na Alemanha, sobretudo a ontologia heideggeriana, continuam exercendo influência, sem que os rastros do passado político provoquem qualquer horror. Tacitamente, a ontologia é compreendida como disposição para sancionar uma ordem heterônoma, dispensada de se justificar ante a consciência. O fato de tais interpretações serem desmentidas em uma instância superior como incompreensões, como queda no plano ôntico e falta de radicalismo da questão, só acaba por fortalecer a dignidade do apelo: a ontologia parece tanto mais fascinante, quanto menos ela precisa se atrelar a determinados conteúdos que permitiriam a inserção do entendimento indiscreto. Intangibilidade transforma-se em inatacabilidade. Quem se recusa a segui-la torna-se suspeito como um apátrida espiritual, sem a terra natal no ser, de modo algum tão diverso do que faziam outrora os idealistas Fichte e Schelling, ao vilipendiarem aqueles que se opunham à sua metafísica. Em todas as suas correntes que se combatem mutuamente e que se excluem reciprocamente como falsas versões, a ontologia é apologética. Todavia, sua influência não seria compreensível se não viesse a seu encontro nenhuma necessidade enfática, índice de uma omissão, não fosse sua nostalgia pelo veredicto kantiano sobre o saber do absoluto um caso difícil de resolver. Quando nos primórdios das correntes neo-ontológicas as pessoas começaram a falar com uma simpatia teológica sobre a ressurreição da metafísica, isso vinha à luz de maneira tosca, mas aberta. Já a vontade husserliana de estabelecer a intentio recta no lugar da intentio obliqua, a de se voltar para as coisas, possuía algo disso; aquilo que na crítica à razão tinha traçado os limites da possibilidade do conhecimento não foi outra coisa senão a reflexão retrospectiva sobre a própria faculdade de conhecimento, da qual o programa fenomenológico gostaria inicialmente de se ver dispensado. No “projeto” da constituição ontológica das áreas e regiões objetivas, e, por fim, do “mundo enquanto suma conceitual de todo existente”, manifesta-se claramente a vontade de apreender o todo sem os limites impostos pelo seu conhecimento: as εἴδη husserlianas que se tornaram existenciais junto ao Heidegger de Ser e tempo deveriam antecipar de maneira abrangente o que todas aquelas regiões, até a mais elevada, propriamente são.

De maneira implícita, achava-se por trás disso a afirmação de que os projetos da razão poderiam impor sua estrutura à profusão do ente; e isso segundo a retomada das antigas filosofias do absoluto, cuja primeira retomada foi o idealismo pós-kantiano. Ao mesmo tempo, porém, a tendência crítica continuou vigente, não tanto contra conceitos dogmáticos, mas antes como o esforço por não estabelecer nem construir mais os absoluta. Desprovidos agora de sua unidade sistemática e separados uns dos outros, mas por acolhê-los receptivamente, em uma postura formada a partir do ideal positivista de ciência, e descrevê-los. Assim, o saber absoluto torna-se novamente, como em Schelling, intuição intelectual. Espera-se eliminar as mediações, ao invés de refletir sobre elas. O tema não-conformista segundo o qual a filosofia não teria de se resignar às suas limitações — àquelas limitações intrínsecas à ciência organizada e utilizável — reverte-se em conformismo. A estrutura categorial assumida enquanto tal sem crítica, um suporte de relações subsistentes, é confirmada como absoluta, e a imediatidade irrefletida do método se presta a toda arbitrariedade. A crítica do criticismo torna-se pré-crítica. Daí o modo de comportamento espiritual que é marcado pelo permanente “retorno a”.

O absoluto transforma-se, o que ele menos gostaria de fazer e o que todavia a verdade crítica diz sobre isso, em algo histórico-natural, a partir do qual pôde ser alcançada de maneira relativamente rápida e tosca a norma da autoadaptação.

Em contrapartida, a filosofia escolar idealista recusou-se a entregar o que espera da filosofia àquele que se envolve com ela de modo despreparado. Essa foi a outra face da autorresponsabilização científica imposta a ela por Kant.

Já no idealismo alemão rumoreja a consciência de que a filosofia empreendida enquanto especialização não tem mais nada em comum com os homens aos quais ela produz a perda do costume de lidar com as únicas questões que poderiam levá-los a se interessar por ela, rejeitando-as como vãs; foi sem precauções usuais entre colegas que Schopenhauer e Kierkegaard o disseram, e que Nietzsche abandonou todo acordo com a realidade acadêmica.

Sob esse aspecto, contudo, as ontologias atuais não se apropriam simplesmente da tradição antiacadêmica da filosofia, na medida em que, como Paul Tillich formulou certa vez, perguntam por aquilo que toca o homem incondicionadamente.

Elas estabeleceram academicamente o pathos do não-acadêmico. Nelas, o frisson agradável ante a decadência do mundo unifica-se com o sentimento aquietante de operar sobre um solo firme, se possível mesmo assegurado filologicamente.

A audácia, prerrogativa, como sempre, do homem jovem, se sabe coberta pelo assentimento geral e pela mais poderosa instituição cultural. Do movimento como um todo surgiu o contrário daquilo que seus pontos de partida pareciam prometer. A ocupação com coisas relevantes regride a uma abstração que não é sobrepujada por nenhuma metodologia neokantiana.

Uma tal necessidade não pode ser apaziguada por essa filosofia, assim como não podia ser outrora apaziguada pelo sistema transcendental. É por isso que a ontologia se envolve com sua névoa.

ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro. Zahar. 2009.

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