Abertura de uma Composição Dissolutiva do Eu em Nietzsche e Sartre.

Gap Filosófico [Decodex)
22 min readAug 23, 2023

--

Inspirado em “ A Filosofia do Tocar” de François Noudelmann

A presente comunicação tem por vista o processo de unilateralidade do eu, que é uma construção que esconde as dissonâncias e ritmos pessoais com os quais nunca deixamos de nos constituir (como chave Ética e Moral inclusive). Entre os indícios que confirmam tal intuição, percebemos que a atividade musical destes dois pensadores chegou a contrariar muitas vezes as suas obras públicas.

Estas inconsistências assim reveladas permitem-nos aproximar destas lacunas e dar um passo interessante.

Podemos observar o desencadeamento da vontade e do jogo corpóreo que resultam de uma imposição de certo indício temporal.

No entanto também podemos observar que estes fatores nos dizem muito mais do que qualquer mera contradição conceitual, pois mais do que alguma contrariedade, se expõe aqui um segredo, uma negociação, uma suspensão ou um processo de dissolução.

Revelando um lado diferente não só desses pensadores escritores, mas também de nós mesmos.

O fato de musicar, longe de exprimir quem somos, envolve- nos na experiência de uma passividade ativa e de uma espécie de temporalidade diferente. Em Sartre e Nietzsche abordaremos a noção de temporalidade como uma janela, uma abertura para o eu como sujeito de composições.

Sartre nunca poderia ter sido indiferente a Nietzsche, que era um bom pianista, compositor e filósofo.

Isso deve ter sido especialmente verdade quando, aos vinte anos, Sartre hesitava entre uma vida literária ou uma vida filosófica, enquanto continuava a tocar piano. Em 1927, ele esboçou um romance inspirado no relacionamento tempestuoso entre Nietzsche, Wagner e a esposa de Wagner.

Como sempre, o jovem Jean-Paul oscilou entre a paródia e a empatia ao se identificar com seus personagens. A personagem principal deste romance, Uma Derrota [ Une défaite ], é uma ambiciosa versão de Nietzsche.

Ele admira o escritor e compositor Richard Organte e deseja escrever um livro sobre ele. Convidado por esse maestro famoso e narcisista, ele se apaixona por sua esposa, Cosima, uma mulher relatada como ingênua e que permite que esse novo admirador satisfaça as necessidades de sua imaginação.

Frédéric até se torna o professor particular de seus filhos.

Mas o grande homem Organte é mais habilidoso e vem a decepcionar Frédéric, que se acredita o portador da filosofia do futuro.

No final das contas, o casal rompe o relacionamento com ele. Reconhecemos facilmente aqui a história do jovem Nietzsche, que ficou fascinado por Richard Wagner durante a escrita de sua primeira grande obra, O Nascimento da Tragédia , e que tomou como modelo o homem que acreditava ser um gênio.

Reconhecemos o desdém do casal Wagner pela música e ambições de Nietzsche, a ambivalência de Cosima Wagner em relação a Nietzsche e, então, sua emancipação desse casal.

Os eventos da biografia de Nietzsche interessaram a Sartre em mais de um aspecto. Cosima Wagner não era totalmente estranha à sua própria família: Albert Schweizter teve o privilégio de conhecê-la em sua velhice em Bayreuth.

E Sartre também transpôs para ela a imagem de uma mulher madura que ele desejava, cujo filho se tornou seu próprio aluno.

Richard Wagner, também conhecido como Organte, recebe um retrato sarcástico no romance de Sartre, e o tom antialemão de Sartre é flagrante.

Podemos pensar que estamos lendo aqui algumas das páginas mais contundentes de Nietzsche, escritas após seu rompimento com Wagner, nas quais ele descreveu sobre esse “idiota teutônico”. Onde então aparece uma espécie de arrogância.

“O maestro alemão canta com movimento exagerado do maxilar, franze “os lábios revelando ferozmente os dentes”

Estaria Sartre mostrando assim sua afinidade com uma repulsa nietzschiana por tal tipo de musicalidade?

Ele se viu nesse retrato de um filósofo no alvorecer de alguma grande obra? Frédéric deveria, afinal, começar a escrever uma elégia dramática sobre Empédocles, que afirmaria seu próprio gênio e transformaria sua derrota pessoal em vitória?

Mas o próprio Sartre nunca deixou de denunciar tal mistificação de um certo combate estético: a imitação não se limita ao sonho infantil, ou a essa sobreposição de sentimentos e ambições entre dois filósofos pianistas.

A proximidade de Sartre com Nietzsche envolve antes de tudo uma contaminação imaginária baseada na admiração e na paródia. ( podendo ser interpretada aqui como inflação e declínio em Nietzsche ou apolíneo e Dionisíaco, ou como aspectos posicionais e não posicionais da consciência ou ainda coo estágios pré-reflexivos posicionais e reflexivos em Sartre)

Também na mistura destes investimentos está a cumplicidade com o homem solitário, assim como a denúncia do jovem romântico afeito ao sublime.

E por trás desse jogo iconoclasta de Sartre contra si mesmo, via Frédéric, está uma relação ambivalente ainda mais profunda do sujeito com seu próprio tempo.

Perturbar o mundo através da transvaloração ou de uma revolução( engajada)requer também uma pausa, uma arritmia, um tempo único que era, para Sartre, o seu piano.

O legado intuitivo musical de Nietzsche pode ser visto em lugares inesperados.

Às vezes a encontramos em uma pequena moldura de madeira decorando um cômodo de uma casa, ou talvez inscrita acima de uma entrada:

“Quão pouco é necessário para a felicidade! O som de uma gaita-de-foles. — Sem a música a vida seria um erro. O alemão imagina até Deus cantando canções.”

Qualquer um mesmo pouco familiarizado com a filosofia, conhece essa máxima, e a importância que Nietzsche concedeu à música foi amplamente estabelecida.

Embora não tenha sido muito lido durante sua vida, esse filósofo escreveu a seus amigos que monumentos seriam construídos para sua obra em cem anos . . . ou talvez quinhentos, ou mil.

No entanto, qualquer que fosse da confiança de que ele pudesse ter de que seus textos o fariam celebridade, compreendia que sua maior esperança era ser conhecido por seus projetos musicais.

Além de filólogo e filósofo, Nietzsche também foi um pianista e compositor que manteve um desejo ao longo da vida de uma carreira como músico.

O insucesso de suas composições não desencorajou suas reflexões sobre a música, e aqueles que escreveram sobre sua obra deram à música um status exemplar para toda a sua filosofia.

Nietzsche foi, então, um músico infeliz que se voltou para filosofia?

Ou melhor, um filósofo-músico que transformou o pensamento em arte? Tais questões vão além da própria vida de Nietzsche: graças a ele, e antes dele Schopenhauer, amante da música, tornou a música não apenas um objeto privilegiado para a filosofia, mas também um ideal — uma questão de importância estética, metafísica e imanente, uma pedra de toque para todas as atividades humanas e valores HUMANOS. ( Um modo de superar o movimento pendular entre o tédio e a necessidade)

Os comentadores de Nietzsche têm e vista que é sua grande obra Assim Falou Zaratustra que ele assim usou suas referências à música como se formassem uma partitura com muitas armaduras de clave, permitindo que suas obras variadas e às vezes contraditórias fossem lidas como um todo.

— mesmo a pior coisa tem boas pernas para dançar: aprendei então vós mesmos, ó homens superiores, a vos manter em vossas pernas certas!

“Fazei como o vento quando sai de suas cavernas na montanha: conforme sua própria música deseja dançar, e os mares tremem e pulam sob seus passos.”

Assim Falou Zaratustra

Visto que Nietzsche é idêntico com Zarathustra, naturalmente a ninguém seria possível ser um amigo pessoal dele; ninguém pode lidar com tal identificação pois isso significa uma inflação. Não podemos ter uma relação pessoal com alguém que tem uma inflação; alguém inflado é neurótico, e é absolutamente impossível constituir uma relação com um neurótico, porque nunca se sabe com quem se está tratando. Um neurótico é sempre uma afirmação e uma negação. Pensamos que estamos perfeitamente seguros acreditando nisto, e então descobrimos algo mais, assim naturalmente todas as relações são perturbadas por longo prazo. Sem dúvida podemos enganar alguém por um certo tempo; podemos viver sob uma ilusão, nos relacionando somente com o lado positivo de um neurótico, mas depois de um tempo seremos confrontados com o lado negativo e então veremos o engano. E assim Nietzsche, inflado pelo arquétipo Zarathustra, foi inumano; uma pessoa que é assimilada por um tal arquétipo é necessariamente não humana.

Jung — Seminários Sobre Zaratustra

  • para Jung “o neurótico é apenas um caso específico de pessoa humana tentando conciliar dentro de si natureza e cultura”

“E assim Nietzsche, inflado pelo arquétipo Zarathustra, foi inumano; uma pessoa que é assimilada por um tal arquétipo é necessariamente não humana.

E um Super- homem, e como se pode ter amizade com um Super-homem? Absolutamente impossível. Podemos somente venerá-lo como um ser superior. Mas eu não desejaria tomar um copo de cerveja com um Superhomem. Não podemos comer na mesma mesa; podemos somente celebrar a comunhão onde ele é o senhor “

Jung — Seminários Sobre Zaratustra

Muito provavelmente sua relação com Wagner ( investindo no sentido estético) também foi intermediada por esta questão “ Natureza X Cultura”

Sua relação tumultuada com Wagner revelou as principais apostas no significado e no futuro da arte, assim como do pensamento.

As discussões sobre essa relação, no entanto, permaneceram por muito tempo bastante teóricas e baseadas em textos.

Mas nos últimos anos, graças à publicação das obras musicais de Nietzsche por Curt Paul Janz, os leitores de seus textos que também sabem ler música puderam redescobrir esse filósofo à luz de suas próprias composições.

https://youtu.be/Z9k0kathjGg

Composições Nietzsche

Ainda que sua produção não tenha uma qualidade que seja reveladora para a história da música, sua abundância merece nossa atenção.

As cerca de setenta obras de Nietzsche — lieber, sinfonias, obras corais, várias peças para piano — não podem ser reduzidas a um mero passatempo separado de sua escrita filosófica.

Pelo contrário, eles estão no cerne de seu pensamento, assim como as mudanças que ocorreram dentro desse pensamento.

De acordo com o assunto deste texto, estaríamos mais interessados em Nietzsche como pianista e nas implicações que esse instrumento teve em seus gostos, sentimentos e imaginação.

Quais compositores Nietzsche interpretou? Como ele os tocou? Quando? E com quem? O próprio Nietzsche não discutiu essa atividade habitual de um sublime poema sinfônico?

Desde seus dias de estudante em Pforta, Bonn e Leipzig, até seus últimos dias ao longo do Mediterrâneo em Gênova, Roma, Nice ou Torino, Nietzsche sempre criou um lugar para si mesmo onde pudesse estar com seus compositores preferidos — que é dizer sua família escolhida.

A maioria das biografias de Nietzsche termina em 1889, no início de sua loucura.

Eles terminam no momento, convenientemente chamado de colapso, em que ele se jogou no pescoço de um cavalo que estava sendo espancado por um cocheiro em Torino.

Na verdade, não há mais nada para ler ou dizer depois que esse filósofo foi trazido de volta a Basel.

Ele foi transferido para a casa de sua mãe e, finalmente, para a casa de sua irmã Elisabeth em Weimar. Desde então, Elisabeth havia se tornado a Sra. Förster e mais tarde se tornaria nazista, arrogando o legado de Nietzsche para essa causa.

Podemos apenas adivinhar sua doença e especular sobre as manobras de sua família sobre sua herança intelectual. De sua loucura e do drama que a envolve, surgem mitos e conjecturas. Seria sífilis, tumor cerebral, psicose ou degeneração hereditária?

Baseamos nossos diagnósticos posteriores nas citações que o filósofo deixou para trás, ou às vezes em citações relatadas por pessoas próximas a ele que testemunharam o fim progressivo de sua atividade cerebral.

Mas esquecemos de mencionar que a incoerência de Nietzsche no final, ou mesmo sua afasia, não o impediu de tocar piano.

Depois de ser internado em uma clínica psiquiátrica em Jena, ele ainda tocava duas horas por dia, tocando e improvisando no piano vertical do refeitório. Köselitz até se perguntou se seu amigo não estava apenas fingindo ser louco, tão brilhante era sua inspiração musical

Overbeck, por sua vez, conta como levava Nietzsche para passear e como tentava conversar com ele, apesar das tentativas de Nietzsche de atacar os cachorros ou as pessoas por quem passavam.

Mas Nietzsche já havia abandonado qualquer diálogo com os outros por meio de palavras, mantendo apenas a linguagem sublime das notas musicais. Sua boca foi silenciada, e apenas suas mãos permaneceram. Aquelas mãos haviam trocado definitivamente a página em branco pelo teclado do piano.

Para Nietzsche, o que está em jogo ao tocar piano envolvia especificamente tocar com, na frente de ou para outra pessoa. No jogo, o objetivo era ouvir o outro, mais do que entender o outro.

171. O necessário na obra de arte. — Aqueles que tanto falam do necessário numa obra de arte exageram, se são artistas, in majorem artis gloriam [para maior glória da arte], ou, se são leigos, por ignorância. As formas de uma obra de arte, que exprimem suas idéias, que são sua maneira de falar, têm sempre algo de facultativo, como toda espécie de linguagem. O escultor pode acrescentar ou omitir muitos pequenos traços: assim também o intérprete, seja ele um ator ou, em música, um virtuose ou maestro. Esses muitos pequenos traços e retoques lhe satisfazem num momento, e no outro, não; estão ali mais pelo artista do que pela arte, pois também ele precisa, no rigor e na autodisciplina requeridos pela apresentação da idéia básica, de doces e brinquedos para não se aborrecer. Humano demasiado Humano

Em sua abundante correspondência, Nietzsche frequentemente evocava as peças em que estava trabalhando, fossem suas próprias ou de seus compositores preferidos.

Ele dialogava com eles porque sentia que, graças à música, também ele pertencia a esses seres para os quais a linguagem se transformara em arte. Quando ele contou aqueles momentos de intensa solidão que sentiu enquanto se escondia em algum quarto miserável de pensão durante uma de suas muitas andanças, Nietzsche descrevia os pianos que alugava, suas teclas de marfim e caixas de mogno.

A mera presença desse instrumento criava para ele um ambiente familiar ao convocar os artistas cujas obras ele tocava.

288. Existem homens que de um modo inevitável possuem espírito; eles podem virar e revirar-se como queiram, e encobrir com as mãos os olhos delatores ( — como se a mão não fosse um delator! — ): afinal sempre resulta que eles têm algo a ocultar, isto é, espírito. Um dos meios mais sutis para enganar o mais longamente possível, e para ter êxito em fingir ser mais estúpido do que se é — o que na vida comum pode ser tão desejável como um guarda-chuva — , chama-se entusiasmo; nele incluindo o que dele faz parte, a virtude, por exemplo. Pois, como diz Galiani, que devia saber — : vertu est enthousiasme [virtude é entusiasmo]. Para além do bem e do mal

Neste aforismo de Para Além do Bem e do Mal diz; as pessoas têm de esconder o rosto nas mãos para não mostrar suas emoções.

Ele observou com que frequência as mãos traem seu dono: sua posição, forma e cicatrizes formam uma paisagem única.( em um sentido de continuum)

No entanto, a linguagem que eles falam foi criada por aqueles que compuseram a música.

Quando Nietzsche deu sua própria opinião sobre o papel apropriado para cada mão, seu diagnóstico não se limitou a Dante, Malwida, Von Meysenbug, em cuja casa em Roma Nietzsche conheceu Lou, relembrou sua execução polifônica e arrebatadora.

Tais descrições devem ser melhor relacionadas às peças específicas que ele estava tocando, pois embora o piano seja o mais orquestral de todos os instrumentos, pode-se tocá-lo de maneira diferente para uma transcrição de Wagner do que para uma melodia de Schumann A formação pianística de Nietzsche nos leva a crer que ele respeitava o papel reservado a cada mão. ( unilateralização técnica)

No entanto, essa relação mudou consideravelmente durante o tempo de sua admiração por Wagner.

Suas próprias composições dessa época enfatizam de forma palpável ressonâncias de tamanho e modulações harmônicas em toda a extensão do piano.

As mãos de Nietzsche são eloquentes; eles têm um estilo próprio que corresponde à psique do músico-filósofo. Uma pessoa inteira é revelada em suas mãos.

E quem sabe disso melhor do que um pianista? De acordo com alguns relatos, o piano de Nietzsche era ao mesmo tempo poderoso e giratório.

Sua concepção de música não envolvia alguma questão de técnica.

Em vez disso, envolveu toda a sua compreensão da música e das relações da fala com a cultura que a mantém.

Em 1881, Nietzsche escreveu: “Ao piano, o importante é deixar a música cantar e o acompanhamento acompanhar”. Sobre seu amor/ódio por Wagner, ou o antídoto que encontrou em Bizet. A maioria dos estudos dedicados aos gostos musicais de Nietzsche são do seu período wagneriano que havia terminado e agora ele retornava a um estilo de tocar que claramente separava melodia, canção e harmonia subjacente.( hierarquização)

As indicações de uma partitura não podiam mais ser desconsideradas, nem tocá-las nervosamente: A música deve cantar.

Nietzsche manteve essa concepção com tanta firmeza que a considerou uma necessidade quase fisiológica, bem como uma arma filosófica.

“Não é a cólera, é o riso que mata. Adiante! Matemos o espírito da Gravidade! Eu aprendi a andar: desde então tenho meu próprio caminhar.” Porque quanto mais ele aprendia a andar, mais leve ele se tornava e mais rápido ele caminhava- algo como uma avalanche. “Eu aprendi a voar; desde então deixei de esperar que me empurrassem para mudar de lugar. Agora estou leve; agora estou a voar; agora vejo-me alto. Agora um Deus dança em mim.”

Assim falou Zarathustra.

E assim podemos perguntar: Quem foram os compositores que lhe imprimiram esta concepção?

Dizer que Nietzsche apreciava Chopin seria muito fraco: ele o adorava; ele se identificou com ele. Em seu O andarilho e sua sombra , Liberdade, beleza, nobreza, o mais livre e gracioso Chopin não procurou romper ou ir além das convenções musicais; ele os sublimava. Ele os interpretou como um rei que deixou para trás a solenidade do poder para compor algumas figuras aristocráticas. Em termos de criação artística, o que distingue Chopin de Wagner vai para a elegante simplicidade das suas formas, a subtileza dos seus arabescos, muito distantes de qualquer Nietzsche faz de Chopin o rei das artes:

O último dos compositores modernos a contemplar e adorar a beleza como fez Leopardi, o polonês inimitável, Chopin — ninguém antes ou depois dele pode reivindicar esse epíteto — Chopin possuía a mesma nobreza principesca em relação à convenção que Raphael mostra no emprego das cores mais simples e tradicionais, no entanto, mas no que diz respeito às formas tradicionais de melodia e ritmo. Estes, nascidos na etiqueta , ele os admite sem questionar, mas o faz brincando e dançando nesses grilhões como o mais livre e gracioso dos espíritos — e o faz, além disso, sem transformá-los em ridículo liberdade , nobreza, o mais livre e gracioso geist.

A barcarola de Chopin. — Quase todos os estados de espírito e todas as situações da vida têm um único momento de felicidade. Bons artistas sabem descobrir esse momento. Há também um daqueles momentos na vida do litoral, aquela vida tão chata, tão suja e tão insalubre, onde você está em contato com a população mais escandalosa e voraz; Chopin conseguiu captar este momento de felicidade no seu barco, a ponto de os próprios deuses se sentirem tentados a esticar-se num barco durante as longas tardes de verão.

O andarilho e Sua Sombra

Nietzsche reúne os conceitos e qualidades mais elogiosas para transmitir a singularidade, a incomparabilidade daquele evento conhecido como Chopin.

Por detrás destes elogios, delineou uma estética que, nas suas diferentes versões, liga liberdade e constrangimento, simplicidade e elegância.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche compara Wagner ao espírito da Grécia antiga. Aqui, sem dizê-lo explicitamente, ele novamente retoma uma compreensão implícita do trágico: a liberdade e o poder surgem por meio de um destino aceito.

Chopin é mais conhecido por suas origens polonesas, então Nietzsche também construiu para si um romance familiar que desta vez o levaria para a Europa Oriental. Nietzsche passou a imaginar que tinha ancestrais poloneses por parte de pai — a família Nietzki, que eram protestantes aristocráticos que supostamente deixaram seu país um século antes devido a perseguições religiosas. Nietzsche assim construiu uma contragenealogia que introduziu sangue estrangeiro em sua família para contestar seu lado alemão. À primeira vista, poderíamos acreditar que se tratava de uma tentativa nada notável de enobrecer alguém tão preocupado em se distinguir. Mas isso seria esquecer que o aristocrata de Nietzsche não era baseado na raça e que a superioridade do super homem ainda estava por vir — aqui é um horizonte e não uma origem. Acima de tudo, esse uso da genealogia pelo autor de Sobre a genealogia da moral deve ser ainda mais complicado por isso.

Chopin, um espírito independente que, segundo Nietzsche, libertou a música de suas influências alemãs, especialmente de Beethoven. À prática musical da dissonância chopiniana demonstra a rebelião que Nietzsche quis glorificar — uma rebelião que também encontrou expressão política na revolta patriótica deste compositor no momento da Revolta de Varsóvia de 1830. A repressão russa da revolta tornou o exílio de Chopin definitivo: Ele trocou Viena por Paris e compôs o;

Étude Revolucionário com seu espírito de resistência.

Nietzsche assim imaginou-se como um irmão de Chopin e buscou confirmações na realidade para essa relação imaginada.

Ele não tinha uma aparência polonesa, vista tanto em seu caráter quanto em sua constituição? Seu amigo Overbeck admitia essa vaidade, sem estar realmente acreditando, considerando tão estranha ancestralidade um mero jogo. Mas pouco importa o grau de convicção de Nietzsche: tratava-se de inventar semelhanças de família por meio da composição e da divisão. Durante suas viagens à Suíça e à Itália, Nietzsche se orgulhava de ser confundido com um polonês.

Sabem, Nietzsche, na primeira parte de sua vida foi um grande e muito intuitivo intelectual, basicamente rebelde e crítico dos valores tradicionais, e os senhores ainda podem encontrar isto em Zarathustra. Havia então, pouco daquilo que se poderia chamar positivo nele; ele poderia criticar com uma prontidão notável, mas não era ainda sintético nem construtivo, e não podia produzir valores. Então, subitamente, como uma revelação extraordinária, tudo aquilo que seus escritos anteriores haviam omitido, propuseram-se a ele. Nascido em 1844, começou a escrever Zarathustra em 1883, tendo portanto 39 anos de idade. 0 modo em que escreveu é notável, Ele mesmo fez um verso sobre isto: ”Da wurde eins zu zwei und Zarathustra ging an mir vorbei’ o que quer dizer: “Então um tornou-se dois e Zarathustra passou através de mim”, significando que Zarathustra então manifestou-se nele como uma segunda personalidade. Isto mostra que ele mesmo tinha uma noção bastante clara de que não era idêntico à Zarathustra. Mas como poderia evitar assumir uma tal identidade naqueles dias em que não havia psicologia? Ninguém teria então ousado levar a sério a idéia de uma personificação, ou mesmo de uma instância espiritual independente e autônoma

SARTRE

Sartre também amava Chopin, embora fosse mais fácil oferecer suas opiniões sobre Schoenberg.

A execução da música e a escrita da musicologia estão ao mesmo tempo separadas, mas ligadas.

Pode-se escrever sobre um compositor, mas tocar outro; pode-se também tocar a música sobre a qual se escreve, como foi o caso de Adorno ou Jankélévitch; ou mesmo pode-se escrever sobre a música que se toca. Barthes escolheu este terceiro caminho, embora de uma forma paradoxalmente divertida: ele afirmou a diferença radical entre tocar e discutir música, mas escreveu sobre sua própria maneira de tocar piano. De fato, seus escritos iniciam uma mudança na musicologia em direção a uma análise da prática — uma mudança que é ainda mais marcante porque ele considerou práticas amadoras.

Em seus textos, o brincar do amador implementa sentimentos e temporalidades que escapam à definição pejorativa, ou talvez apenas subestimativa, de amadorismo.

O amador não é um pianista menor, mas um pianista que toca diferente! Quando Roland Barthes falava de seu próprio fazer musical, em certa medida ele evocava o fazer musical de todos e de todos. Seus comentários falam da experiência do pianista anônimo que se entrega ao seu instrumento sem se preocupar com o resultado.

Esse amador traz para sua execução uma variedade de relações diferentes — sonoras, corpóreas, afetivas, espirituais e assim por diante.

Mas como podemos levar em conta todos esses comportamentos privados e pessoais? Os amadores são tão diversos que parece impossível fazer uma síntese entre as escolhas que cada um faz: usar uma partitura; se deve improvisar; se deve tocar ao menos uma hora todos os dias, ou realmente comece a tocar apenas quando a inspiração surgir; se toca sozinho ou com a família; se deve adicionar eletrônicos; se deve ser acompanhado por outros instrumentos; e assim por diante.

Melhor, sem dúvida, começar analisando a si mesmo e a sua execução musical e depois tentar encontrar essas verdades sentidas pelos outros também. Essa tentativa de fundar uma ciência do indivíduo fora a ambição impossível de Barthes ao escrever sobre a fotografia.

No entanto, o piano envolve seu músico muito mais do que as imagens envolvem seu espectador.

O piano acompanha o seu pianista ao longo de toda a sua vida, com regularidade, desde a aprendizagem desde criança até ao tocar se tornar uma atividade refletida e comentada.

O piano é ao mesmo tempo um ritmo e uma duração.

Nem verdadeiramente um intérprete nem um compositor, Sartre manteve um alto nível de controle sobre o piano, um controle que foi desenvolvido em sua infância. O que mais impressiona nesse estilo de tocar reside em sua persistência no tempo e em sua compatibilidade com outras atividades de Sartre, às quais de outra forma poderia parecer heterogênea. Claro que podemos nos deliciar com a descoberta de gostos musicais discordantes do extraordinário interesse de Sartre por tudo o que havia de novo no mundo da arte.

Sartre tentou pensar em uma junção de temporalidades, pois ainda acreditava na História e em seu movimento abrangente. Ele, portanto, formulou deliberadamente a ideia de “soluções de continuidade” [ solutions de continuité ] para se referir às maneiras únicas que um indivíduo cria para organizar seu tempo no continuum histórico.

O tempo humano é assim constituído por múltiplos “perfis de temporalização”. Através do desvio e da inflação do próprio plano de existência do indivíduo, esses perfis de temporalização dão ao tempo humano a forma de uma espiral. Ao longo de sua vida, Sartre manteve encontros individuais não apenas com Flaubert e Chopin, mas também com tantas outras pessoas, lugares e sentimentos, que seriam impossíveis de nomear. Esses encontros participaram da curvatura de sua própria existência e ajudaram a criar “soluções de continuidade”.

Superficialmente, o argumento de Sartre mantém seu título filosófico e polêmico: ele critica o marxismo “científico” e sua noção determinista e reducionista de que os escritores meramente refletem seus condicionamentos sociais. Um livro e seu autor se confundem e se desviam da representação que deveriam dar de sua turma e de seu tempo. Em vez disso, eles são atravessados por inúmeras temporalidades.

Mas então, de repente, o camarada Sartre se desculpou: desculpe, ele tem um encontro marcado com Flaubert. Que tipo de questões filosóficas ele trata nesta obra? É, com certeza, sobre o tempo: sobre a encarnação psicológica, linguística e histórica de um indivíduo único que engoliu e digeriu seu próprio tempo na escrita de Madame Bovary . Sartre combinou todas as abordagens possíveis para entender esse homem de seu tempo, buscando uma síntese de todos os tipos de conhecimento, que ele denominou de método “progressivo-regressivo”. Este método envolve um movimento para frente e para trás do Em particular, eles contêm aquela temporalidade em que diferentes gerações se reúnem em um determinado momento. Embora os indivíduos possam compartilhar o mesmo presente, cada um pode ter durações e ritmos muito diferentes. A contemporaneidade de um autor e seu público implica acronismo, pois um autor pode estar à frente de seus leitores. indivíduo à história. Procurava não fixar a pessoa individual como objeto de estudo, mas encontrar o movimento pelo qual essa pessoa dava sentido às suas determinações passadas, projetando-as para o futuro. Mas Sartre também investigou um tempo diferente daquele que historicamente programou Flaubert. Ele analisou os desencontros, os mal-entendidos que surgem na relação de um indivíduo com seu próprio tempo; ou seja, ele analisou os anacronismos de Flaubert. O texto de Sartre constrói, assim, uma reflexão espelhada para si mesmo, como se tratasse de sua própria relação com o tempo político e histórico.

É que um homem nunca é um indivíduo, seria melhor Chamá-lo de universal singular: totalizado e, da mesma forma, universalizado por seu tempo, retotaliza-o reproduzindo-se nele como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, exige ser estudada simultaneamente nas duas pontas. Ele nos dá Terá de ser encontrado um método adequado. Dei os princípio sdisso em 1958 e não vou repetir o que disse a respeito: prefiro mostrar, sempre que necessário, como se faz no trabalhar a si mesmo para obedecer às exigências de seu objeto.

É que um homem nunca é um indivíduo, seria melhor Chamá-lo de universal singular: totalizado e, da mesma forma, universalizado por seu tempo, retotaliza-o reproduzindo-se nele como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humano, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, exige ser estudada simultaneamente nas duas pontas. Ele nos dá Terá de ser encontrado um método adequado. Dei os princípiosdisso em 1958 e não vou repetir o que disse a respeito: prefiro mostrar, sempre que necessário, como se faz no trabalhar a si mesmo para obedecer às exigências de seu objeto.

Adorno diz;

Nietzsche reconheceu desde cedo que o material musical estava cheio de intenções, assim como reconheceu a contradição potencial entre intenção e material. “A música não é em si e por si tão importante, tão profundamente impressionante para nosso ser íntimo, que possamos considerá-la como língua direta do sentimento; mas sua antiqüíssima relação com a poesia pôs tanto simbolismo no movimento rítmico, na força e fragilidade do som, que hoje temos a impressão de que a música fala diretamente a nosso ser íntimo e que provém dele. A música dramática só é possível quando a arte dos sons conquistou um enorme campo de meios simbólicos através do canto, da ópera e de centenas de intentos da pintura musical. A ‘música absoluta’ é forma em si, no estado grosseiro da música, no qual o som em medida de tempo e diversamente acentuado produz prazer em geral, ou ainda é, sem poesia, simbolismo das formas que falam ao intelecto, uma vez que num grande desenvolvimento a música e a poesia se uniram e por fim a forma musical se encontrou inteiramente entrelaçada com fios de conceitos e sentimentos. Os homens que permaneceram para trás na evolução da música podem sentir uma obra musical de maneira puramente formal, enquanto aqueles que mais avançaram compreendem tudo de maneira simbólica

Em a Náusea

Há momentos em que Roquentin vislumbra a possibilidade de se “salvar” da Náusea.

Esses momentos ocorrem quando a personagem ouve um jazz, Some of these days, no Rendez-vous dês Cheminots.

Em seu último dia em Bouville, Roquentin compreende que a música é ouvida como irreal. Roquentin quer reter com as mãos as notas reais da música, mas percebe que isso só o faria ter um som apagado entre os dedos: é preciso desejar que as notas “morram”, deixar que “uma de lugar a outra” para que constituam a sua firme unidade irreal.

Roquentin observa que não pode encontrar a melodia do saxofone de Some of these days nos sons reais que a compõe uma vez que a melodia do saxofone não existe:

Na obra “O Ser e o Nada” de 1943, Sartre começa a desenvolver um caminho rumo a Critica da Razão Dialética. Nesta primeira obra Sartre interpreta a realidade a partir de uma dicotomia.

O Para-si e o Em-si, no primeiro caso, o Para-si, representa a consciência e no segundo, o Em-si, é a própria materialidade.

A relação entre estes dois polos é efetivamente dialético, logo, se o Para-si busca sentido no Em-si, é fundamental buscar sua inteligibilidade

Sartre reafirma a inovação de Marx, a de preservar o movimento dialético tanto no Ser quanto no conhecimento, e demonstrar que a história esta em curso, e que, ao contrario do que supunha Hegel, o Ser é irredutível ao Conhecimento.

E por outro, o indivíduo não se torna subtraído nas “leis” universais da dialética, mas ao contrário, participa da e na história como “totalização em andamento”. Mas sem que com isto, se negue a conformação modeladora da história e da matéria inclusive como dissolução de um eu performativo formalista.

Com isso concluímos com a seguinte afirmação de Oswaldo Giacóia sobre a possibilidade de janelas temporais fomentadas por Sartre e Nietzsche

O passado e o futuro não possuem nenhuma realidade, o presente possui realidade efetiva no agora que não possui absolutamente nenhuma duração, portanto depende deste aqui e agora em cada instante vivido como você vai configurar sua vida, se como algo grandioso ou miserável.

--

--

No responses yet