Deleuze/Heidegger: Motivação e método na busca do simulacro em Platão
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A crueldade para com a tradição é reverência para com o passado, e só é genuína numa apropriação do último (o passado) a partir de uma destruição do primeiro (a tradição).
-Martin Heidegger, PS, 286
A dádiva envenenada do Platonismo é ter introduzido a transcendência na filosofia, ter dado à transcendência um significado filosófico plausível.
-Gilles Deleuze, ECC, 137
O que é que Nietzsche quer dizer quando apela à filosofia do futuro para inverter o platonismo? Esta é a questão que Gilles Deleuze coloca no início do seu ensaio “Platão e o Simulacro”.
À primeira vista, Nietzsche parece defender a abolição da teoria das ideias de Platão, que cria uma relação hierárquica entre a essência ou ideia abstrata de uma coisa e a sua aparência concreta.
No entanto, como salienta Deleuze, este objetivo não seria próprio de Nietzsche, pois também marca o pensamento de Hegel e Kant.
Mais do que um projeto de abolição, Deleuze entende que o apelo de Nietzsche visa desvendar a motivação da teoria das ideias. Esta, diz Deleuze, reside no desejo de Platão de distinguir entre dois tipos de imagens da coisa: a cópia e o simulacro.
Simulacro é um termo latino, que significa “semblante”, e que ganhou atualidade teórica através do seu uso extensivo na escrita pós-moderna, particularmente francesa,Badiou, Baudrillard e Deleuze.
O termo usado por Platão é phantasma, que pode ser traduzido como “imagem semblante”de acordo com o grau de participação na ideia.
Tanto a cópia como o simulacro assemelham-se àquilo de que são imagens; enquanto a cópia é considerada uma imagem verdadeira, o simulacro é entendido como falso, a sua semelhança aparente só é conseguida através do engano.
Deleuze afirma que Platão cria a teoria das ideias com o objetivo expresso de suprimir o poder de subterfúgio da imagem simulacral.
No que se segue, desenvolveremos esta afirmação, combinando a análise de Deleuze a partir de Platão com a descrição de Martin Heidegger do método que Platão emprega, no diálogo Sofista, para apreender o simulacro.
Esta investigação entrelaçada será desenvolvida até ao ponto do diálogo em que Platão prepara o simulacro, sob a forma do sofista — o falso filósofo, para captura, dividindo o “domínio das imagens” em dois.
De um lado da divisão, a cópia, a imagem que se conforma; do outro lado, o simulacro, a imagem que engana.
No seu curso de 1925 sobre o diálogo Sofista de Platão, publicado em 1997 como O Sofista de Platão, Heidegger descreve em pormenor o método dialético que Platão utiliza para domar o simulacro: a divisão.
Ostensivamente, a divisão é um processo de definição, utilizado pelos interlocutores em três dos principais diálogos: o Fedro, o Estadista e o Sofista, que atinge o seu objetivo de definição ao demonstrar como um ser está ligado ao seu eidos ou “ideia”.
Para isso, os interlocutores dividem a coisa numa linhagem ontológica ou genos, que descende da ideia até ao ser específico.
Desta forma, é dada a ascendência da coisa, a sua proveniência, mostrando aquilo a partir do qual ela se torna o que é.
No Sofista, os interlocutores: o estrangeiro eleático e Teeteto, procurando definir o genos do sofista, começam por praticar as suas capacidades de divisão sobre um “objeto exemplar”, ou seja, um paradigma do sofista.
O pescador é escolhido como paradigma porque é visto como um exemplo de muitos dos atributos do sofista, incluindo o uso de subterfúgios para capturar aquilo que caça.
As presas do pescador são seres vivos que se movem nas profundezas da água, enquanto as presas do sofista são seres vivos que vivem em terra, “seres vivos domesticados, especificamente o homem”; jovens ricos e crédulos, que o sofista pretende recrutar como seguidores, através do poder do seu discurso.
“Dentro da perícia como um todo, metade era aquisitiva; metade da aquisitiva era a tomada de posse; metade da tomada de posse era a caça; metade da caça era a caça de animais; metade da caça de animais era a caça aquática; toda a parte inferior da caça aquática era a pesca; metade da pesca era a caça por golpe; e metade do golpe era o anzol. E a parte do anzol que envolve um golpe que puxa uma coisa para cima a partir de baixo é chamada por um nome que deriva da sua semelhança com a própria ação, ou seja, chama-se pesca de arrasto ou pesca à linha — que é o que estamos a procurar” (221b)
O processo de divisão começa com os interlocutores a dizerem como lhes aparece o fenômeno do pescador.
Concordam que veem o pescador como um technites, ou seja, como alguém que possui techné ou expertise, isto é, conhecimento e habilidade em relação à sua área de atuação.
A definição do pescador parte então deste entendimento de base, através de uma série de divisões, em que o pescador é dividido de acordo com uma ideia de techné.
Para chegar a esta ideia, a techné é dividida entre uma perícia de produção, a capacidade de produzir o que ainda não existe; e uma perícia de aquisição, a capacidade de tomar o que já existe.
Dentre estas, esta última é escolhida como a ideia mais pertinente para o pescador, como aquele que apanha o que já existe, ou seja, o peixe.
A divisão continua, a aquisição é dividida entre aquisição por apreensão e aquisição por troca.
A primeira é considerada a mais adequada à aptidão do pescador, porque ele toma o que procura sem dar nada em troca.
A aquisição por captura é então dividida entre a captura pela força, ou seja, numa batalha, e a captura por subterfúgio, ou seja, na caça; esta última é escolhida como a mais pertinente para o pescador.
Neste processo de divisão, a troca dialética dos interlocutores divide a techne do pescador em duas ideias ou espécies.
Escolhe-se a espécie que corresponde ao fenómeno do pescador enquanto técnica: aquisição, e descarta-se a que não corresponde: produção.
Isto permite que a definição do pescador apareça numa linhagem, que estabelece o genos do pescador como uma techné de aquisição, como vimos acima.
A partir daqui, poder-se-ia afirmar que o único objetivo da divisão é chegar a esta definição, mas Deleuze diz que não, que este é apenas o seu aspecto irônico.
Se chegar a uma definição é o verdadeiro objetivo da divisão, então a objeção de Aristóteles, de que se trata de um método que carece de um termo médio, ou seja, de um conceito pelo qual se seleciona um lado da divisão em detrimento do outro, é válida.
Além disso, dizer que o objetivo da divisão é a definição implica que o genos que está a ser definido é claro e inequívoco, do qual decorre naturalmente a seleção de espécies determinadas.
Deleuze afirma, em vez disso, que o processo de divisão deve ser entendido como um processo em que o genos é uma “espécie confusa” que precisa de ser refinada, como se refinaria o ouro, separando o puro — os reivindicadores autênticos, do impuro — os reivindicadores não autênticos.
Estas são as alternativas consideradas em cada fase da divisão.
O que ambos reivindicam é a participação na ideia que está a ser definida, mas apenas aquele que é considerado o verdadeiro participante é escolhido.
O objetivo fundamental da divisão, portanto, não é dividir em largura, mas ordenar em profundidade.
A divisão atua como um ecrã que cria uma linha pura de descendência, ou seja, uma proveniência, ao separar as reivindicações autênticas de participação das não autênticas, o verdadeiro do falso, num processo de seleção e ordenação.
Para Daniel W. Smith, o desejo de Platão de selecionar os reivindicadores tem a sua base na estrutura da sociedade ateniense, que era fundamentalmente agonística, ou seja, uma sociedade de rivais; na qual a capacidade de fazer uma reivindicação e uma contra-reivindicação estava aberta a todos os cidadãos.
Por exemplo, qualquer cidadão podia apresentar-se como apto a ocupar um lugar vago de magistrado na cidade.
Do mesmo modo, os sofistas, rivais dos filósofos, afirmavam que só eles possuíam a sabedoria universal e que, por isso, só eles deviam ser considerados os verdadeiros filósofos.
A questão, então, era como distinguir entre aqueles que têm uma boa pretensão e aqueles que não têm fundamento para a sua pretensão? Deleuze defende que Platão cria a teoria das ideias em resposta a este problema, utilizando-a para estabelecer critérios que permitam avaliar a legitimidade das reivindicações rivais.
Nos diálogos Fedro e Estadista, aqueles que afirmam participar na ideia emitem uma imagem, através da qual parecem possuir a ideia como uma qualidade imaculada.
Cabe então aos interlocutores validar ou não essa imagem.
Mas surge agora uma questão: em que se baseiam estas validações, se não no conceito mediador que Aristóteles exige?
A resposta de Deleuze é que o fundamento da validação das reivindicações de participação pela divisão não é conceitual, mas mítica.
O mito é o fundamento da divisão. Permite que os rivais sejam colocados em ordem, de acordo com o seu grau de conformidade com a ideia, e que sejam selecionados ou rejeitados de acordo com a validade das suas reivindicações
No diálogo sobre o estadista, as reivindicações para ser considerado o verdadeiro estadista centram-se numa ideia de cuidado.
A questão que se coloca é: quem, de entre os candidatos, tem a maior pretensão de cuidar dos outros?
As reivindicações são avaliadas em relação a um modelo mítico de cuidado, representado por um deus antigo, o “pastor-rei da humanidade”.
Os rivais são seleccionados e ordenados de acordo com o grau de participação no modelo de cuidados que irradia do Deus-pastor.
O estadista, devido ao seu cuidado com a sociedade no seu todo, é considerado o mais parecido com o Deus-pastor, sendo por isso colocado em segundo lugar na fila, a seguir ao próprio deus.
Esta ordenação prossegue, enumerando os que têm cada vez menos direito a participar na ideia mítica de cuidado: “pais, servos, auxiliares”. (DR, 76)
O mito não só permite ordenar os rivais desta forma, como também lhes permite serem confirmados ou rejeitados na sua rivalidade.
Alguns, devido às suas ocupações de médicos, agricultores, comerciantes, etc., afirmam que devem ser considerados iguais ao estadista enquanto “pastor de homens”.
Estas pretensões acabam por ser rejeitadas; todos exercem o cuidado de alguma forma, mas o cuidado do estadista sobrepõe-se a todos os outros, devido à integralidade do cuidado que exerce.
O estadista preocupa-se com todos os aspectos da vida dos seus governados, enquanto os outros exercem formas especializadas de cuidado, ou seja, os médicos cuidam apenas do corpo dos doentes, os agricultores cuidam apenas da saúde das suas colheitas. Finalmente, a pretensão do simulacro do estadista, o tirano, é também rejeitada, devido à falsidade da sua pretensão.
O verdadeiro estadista governa por cooperação, mas o tirano governa por compulsão. Assim, pelas suas ações, o tirano é visto como alguém que não participa na ideia de cuidado implícita no modelo mítico do pastor de homens. É considerado um charlatão, e a sua pretensão é completamente rejeitada.
O mito, portanto, tal como a própria ideia, é uma estrutura transcendente que fundamenta a classificação e a seleção pela divisão das reivindicações rivais de participação. Do verdadeiro participante, ou seja, a cópia, ao falso, ou seja, o simulacro. Deleuze define participação como “ter depois, ter em segundo lugar”. (DR, 78)
É efetivamente uma medida do grau em que os pretendentes (ou seja, os reclamantes) participam naquilo que a ideia oferece para participação. Se a Justiça é a ideia pela qual os pretendentes se esforçam, o que eles afirmam possuir é a qualidade da Justiça, ou seja, a justeza.
O sentido intrínseco ao fundamento mítico da divisão, o de estabelecer uma hierarquia nomeada de participação, permite à dialética falada dos interlocutores selecionar e ordenar os rivais, começando pela própria ideia.
Neste caso, a Justiça é a ideia para a qual todos se dirigem e que possui o que dá para participar de forma primária, só a Justiça é justa.
Os requerentes são então ordenados de acordo com o grau de participação na ideia, desde a cópia fiel que participa de forma secundária, até aos que são considerados cada vez menos justos e que, por isso, são designados como terceiro e quarto na hierarquia.
Esta ordenação continua até ao simulacro, o falso reivindicador.
O simulacro pretende, pela sua aparência, partilhar a ideia de Justiça, dá uma imagem de ser justo, mas “sem passar pela ideia”, pelo que pode ser rejeitado como uma imagem intrinsecamente falsa.
A identidade da cópia é dada pela sua semelhança com o seu modelo, ou seja, pelo grau de participação naquilo a que aspira, a ideia.
No entanto, é um erro pensar então no simulacro como uma espécie de “cópia degradada”, uma cópia inferior da cópia.
Pelo contrário, é melhor pensá-lo como o outro demoníaco da ideia e da cópia. O simulacro é demoníaco porque tem o poder de aparecer deliberadamente como aquilo que não é, de se insinuar por todo o lado e de fazer falsas alegações quanto à autenticidade da sua proveniência. A capacidade do simulacro para a falsidade é mais evidente no simulacro por excelência, o sofista, que, aos olhos dos filósofos, reivindica “a capacidade de falar e conversar razoavelmente e lindamente sobre todas as coisas, independentemente do facto de o que é dito ser válido ou não”. (PS, 149) O sofista não é o que parece ser, um philosophos, um “amigo da sabedoria”. A implicação é que ele é, em vez disso, a personificação do pseudos, o falso, e pela sua própria existência prova que o falso é, existe.
Para combater os poderes de engano do sofista, Platão, no diálogo Sofista, esforça-se por fazê-lo aparecer como a fraude que é, da mesma forma que o seu paradigma, o pescador, foi feito aparecer, através de um processo de definição em que a sua verdadeira proveniência é revelada.
No entanto, a tarefa de definir o sofista é mais fácil de dizer do que de fazer; ele é uma personagem complicada, que foge constantemente à definição. Fá-lo adoptando diferentes formas de perícia e convencendo os ouvintes, através do poder do seu discurso retórico, de que diz a verdade em cada uma delas.
Tal como Heidegger salienta, é imperativo que a definição seja efetuada, pois se o sofista não for capaz de se definir, o seu discurso não será capaz de se definir.
O estadista é igual ao “pastor dos homens”.
Estas reivindicações acabam por ser rejeitadas; todos exercem cuidados de alguma forma, mas os cuidados do estadista superam os seus, devido à integralidade dos cuidados que exerce.
O estadista preocupa-se com todos os aspectos da vida dos seus governados, enquanto os outros exercem formas especializadas de cuidado, ou seja, os médicos cuidam apenas do corpo dos doentes, os agricultores cuidam apenas da saúde das suas colheitas. Finalmente, a pretensão do simulacro do estadista, o tirano, é também rejeitada, devido à falsidade da sua pretensão.
O verdadeiro estadista governa por cooperação, mas o tirano governa por compulsão. Assim, pelas suas acções, o tirano é visto como alguém que não participa na ideia de cuidado implícita no modelo mítico do pastor de homens. É considerado um charlatão, e a sua pretensão é completamente rejeitada.
O mito, portanto, tal como a própria ideia, é uma estrutura transcendente que fundamenta a classificação e a seleção pela divisão das reivindicações rivais de participação. Do verdadeiro participante, ou seja, a cópia, ao falso, ou seja, o simulacro. Deleuze define participação como “ter depois, ter em segundo lugar”. (DR, 78) É efetivamente uma medida do grau em que os pretendentes (ou seja, os reclamantes) participam naquilo que a ideia oferece para participação. Se a Justiça é a ideia pela qual os pretendentes se esforçam, o que eles afirmam possuir é a qualidade da Justiça, ou seja, a justeza.
O sentido intrínseco ao fundamento mítico da divisão, o de estabelecer uma hierarquia nomeada de participação, permite à dialética falada dos interlocutores selecionar e ordenar os rivais, começando pela própria ideia.
Neste caso, a Justiça é a ideia para a qual todos se dirigem e que possui o que dá para participar de forma primária, só a Justiça é justa.
Os requerentes são então ordenados de acordo com o grau de participação na ideia, desde a cópia fiel que participa de forma secundária, até aos que são considerados cada vez menos justos e que, por isso, são designados como terceiro e quarto na hierarquia. Esta ordenação continua até ao simulacro, o falso reivindicador. O simulacro pretende, pela sua aparência, partilhar a ideia de Justiça, dá uma imagem de ser justo, mas “sem passar pela ideia”, pelo que pode ser rejeitado como uma imagem intrinsecamente falsa.
A identidade da cópia é dada pela sua semelhança com o seu modelo, ou seja, pelo grau de participação naquilo a que aspira, a ideia. No entanto, é um erro pensar então no simulacro como uma espécie de “cópia degradada”, uma cópia inferior da cópia.
Pelo contrário, é melhor pensá-lo como o outro demoníaco da ideia e da cópia.
O simulacro é demoníaco porque tem o poder de aparecer deliberadamente como aquilo que não é, de se insinuar por todo o lado e de fazer falsas alegações quanto à autenticidade da sua proveniência.
A capacidade do simulacro para a falsidade é mais evidente no simulacro por excelência, o sofista, que, aos olhos dos filósofos, reivindica “a capacidade de falar e conversar razoavelmente e lindamente sobre todas as coisas, independentemente do facto de o que é dito ser válido ou não”. (PS, 149)
O sofista não é o que parece ser, um philosophos, um “amigo da sabedoria”. A implicação é que ele é, em vez disso, a personificação do pseudos, o falso, e pela sua própria existência prova que o falso é, existe.
Para combater os poderes de engano do sofista, Platão, no diálogo Sofista, esforça-se por fazê-lo aparecer como a fraude que é, da mesma forma que o seu paradigma, o pescador, foi feito aparecer, através de um processo de definição em que a sua verdadeira proveniência é revelada.
No entanto, a tarefa de definir o sofista é mais fácil de dizer do que de fazer; ele é uma personagem complicada, que foge constantemente à definição. Fá-lo adoptando diferentes formas de perícia e convencendo os ouvintes, através do poder do seu discurso retórico, de que diz a verdade em cada uma delas.
Como Heidegger salienta, é imperativo que a definição seja efetuada, pois se o sofista não pode ser definido, então o falso não pode existir.
Ou seja, não há forma de distinguir entre o filósofo e o sofista, entre a cópia e o simulacro.
O sofista só poderá aparecer como a contrafação que realmente é através de um processo de definição, que o arraste para a luz do dia a partir dos seus muitos esconderijos. Só depois de ter sido trazido para fora dos seus muitos esconderijos é que a sua capacidade de aparecer como aquilo que não é pode ser compreendida.
Os interlocutores utilizam, portanto, o processo de divisão da definição para, em primeiro lugar, encontrarem a única ideia de techne que se aplica ao sofista, de entre as muitas que ele adota.
Depois de uma série de divisões, o sofista aparece sob as diferentes formas de competência que assume: caçador, vendedor, professor, etc.
Os interlocutores concordam então que a única techné comum às várias que adota é a techné antilogikos.
O sofista é hábil na “arte de falar contraditoriamente”; é assim que ganha argumentos e reúne seguidores .
Platão afirma que a "modificação do sofista para a ingenuidade", ou seja, o subterfúgio, está também presente em toda a arte.
Usa o paradigma da produção artística para nos permitir ver mais claramente a falsidade do sofista e, portanto, do simulacro, e para o distinguir da cópia.
A mimese, técnica do artista figurativo, produz imagens que se assemelham a algo, mas que não são aquilo a que se assemelham.
Platão distingue dois tipos de produção de imagens: 1). Eikastike, "iconista", que produz eikones, "ícones", imagens que seguem as dimensões e as cores do original; 2). Phantastike, que produz phantasmata, "imagens semblantes", que, quando comparadas com o eikon, têm um carácter modificado.
Assim, a produção de imagens pelo artista pode visar a reprodução exata das aparências, ou seja, os ícones, ou pode visar a produção de imagens que têm o carácter de uma modificação do original a que se referem, os phantasmata.
A primeira é a mais parecida com aquilo de que é imagem, extrai as proporções e as cores exatas do que vai ser apresentado.
É uma imagem com carácter de semelhança, mas sem ser genuinamente aquilo que apresenta, isto é a cópia.
O phantasma é uma imagem que difere do modelo, não reproduz exatamente o ser real, mas distorce-o, parecendo-se com ele, é o simulacro.
Todas as imagens têm apenas a aparência de realidade, mas enquanto a produção do eikon visa a aparência de exatidão, o foco do phantasma, na coerência da imagem global, independentemente da correção, torna-a "menos aquilo que apresenta"; portanto, na imagem simulacral, o não-ser, ou seja, o falso, "é tanto mais genuíno".
Platão estabelece, assim, dois tipos de imagens: cópias e simulacros.
Na análise de Deleuze, as cópias são pretensões bem fundadas, construídas sobre uma semelhança com o original, enquanto os simulacros são pretensões falsas, construídas sobre uma dessemelhança.
À luz disto, a diferença entre cópias e simulacros é ainda mais clarificada. As cópias são garantidas por uma semelhança eidética com o original, enquanto os simulacros são contraditos pela sua dissemelhança eidética com o original.
Tanto a cópia como o simulacro são imitações, mas a cópia está em conformidade com a essência da coisa representada e, como tal, dá um efeito de veracidade na sua representação do que é, ou seja, a ideia.
Já o simulacro produz o que Deleuze chama de "efeito não produtivo de semelhança".
Na sua imagem, não pode reproduzir o eidos ou a ideia da coisa; dá, em vez disso, o efeito de imitar aquilo de que é uma imagem, por "ardil e subversão".
Platão dá um exemplo de como a subversão orienta a produção da imagem simulacral na techné do artista figurativo; na forma de um grande friso esculpido na lateral de um edifício.
O objetivo do artista, ao produzir a obra, é criar a impressão de uma imagem coerente da cena representada aos olhos do espectador no chão, olhando para cima.
Para o conseguir, é necessário aumentar as dimensões reais das figuras mais acima, para que não pareçam desproporcionadas para o observador.
O recurso a este estratagema indica que o artista não visa a exatidão do eikon, ou seja, a correção da representação, mas sim uma "mera aparência", um efeito que se centra em fazer com que a imagem global apareça ao observador como uma "coisa real integrada".
O fato de o espectador da obra de arte só poder experimentar uma "impressão de semelhança", seja qual for o ponto de vista em que a veja, significa que é considerada uma imagem falsa, um simulacro.
Este é o ponto em que Deleuze e Heidegger divergem agora.
Heidegger salienta que a aparência concreta do simulacro prova a sua existência, permitindo a Platão procurar o Ser subjacente ao seu não-ser.
A procura subsequente do Ser por parte do próprio Heidegger, em Ser e Tempo (publicado em 1927, dois anos depois de proferir as conferências Sofistas), baseia-se explicitamente nos esforços de Platão.
Heidegger caracteriza a sua busca do Ser, em Ser e Tempo, como uma contribuição para uma batalha "recentemente reacendida" de deuses e gigantes a respeito do Ser, (BT, 2) uma referência direta à análise ontológica do diálogo Sofista.
Deleuze chega a uma conclusão diferente: julgar as imagens segundo o grau de conformidade com a ideia impõe ao simulacro os constrangimentos da representação platônica, ordenando-o segundo as exigências da semelhança e da imitação, e obstruindo assim o seu demoníaco "poder do falso".
É por isso que Platão divide o domínio das imagens em dois, tornando a parte que se conforma com o original, a cópia, plácida na sua conformidade, enquanto encerra a parte que permanece rebelde, o simulacro, "numa caverna no fundo do Oceano".
É esta, afirma Deleuze, a motivação de Platão ao criar o domínio da representação, supervisionado pela teoria das ideias, que "a filosofia reconhecerá mais tarde como seu" e que Nietzsche convida os futuros a derrubar; a permitir que o simulacro possa vir à superfície, para afirmar o seu “poder fantasmático”, o seu poder de enganar.
Gilles Deleuze, Difference and Repetition, (London: Bloomsbury Academic, 2019).
Gilles Deleuze, “Plato and the Simulacrum” in The Logic of Sense, (London: Bloomsbury Academic, 2019).
Gilles Deleuze, Essays Critical and Clinical, trans. Daniel W. Smith and Michael A. Greco (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997).
Derek Hampson, Reading Plato’s Sophist in Lockdown, (Amazon, 2021).
Martin Heidegger, Being and Time, trans. John Macquarrie and Edward Robinson, (Malden, MA: Blackwell Publishing, 1962).
Martin Heidegger, Plato’s Sophist, (Bloomington, Indiana: IUP, 1997).
Plato, The Sophist, translated by John Burnet, (Oxford: University Press, 1903).
Daniel W. Smith, “Deleuze and the Overturning of Platonism: The Concept of the Simulacrum,” in Continental Philosophy Review, Vol. 38, Nos. 1–2 (Apr 2005), 89–123.