Deus está morto mas ele não sabe! Slavoj Zizek interpreta Dostoiévski por uma ótica lacaniana.
Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto — mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai- a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente ( Seminário 11, Lacan ([1964] 1988, p. 60)
Esta afirmação lacaniana quando combinada com a perspectiva de uma afirmação atribuída a Dostoiévski que pressupõe que “se deus não existisse tudo seria permitido“ nos trás um ponto fundamental de reflexão sobre aquilo que entendemos como ateísmo moderno, no seguinte sentido;
Zizek nos diz que o ateu moderno crê na morte de Deus porém não compreende que continua a acreditar nele inconscientemente, a figura da crise moral religiosa não se apresenta mais na fórmula do “ crente” que coloca suas crenças em dúvida mesmo que de forma problemática, mas na fórmula do ateu convicto e hedonista que busca a realização da vida plena e feliz,( como se isso fosse possível no sentido mais chulo do termo hedonismo)enquanto sujeito equilibrado, que se torna muito mais moralista a partir de regras estabelecidas por seu inconsciente.
Ou seja se “Deus está morto” tudo me é proibido, faz sentido esta máxima?Zizek nos diz que quanto mais convicto de seu ateísmo um sujeito é, mais aprisionado por proibições inconscientes o é. E a inversão desta concepção também deve ser levada em consideração “ Se Deus existe tudo me é permitido” é o que nos revela a aura de alguns fundamentalistas religiosos que diante de atitudes condenáveis já estão absolvidos por antecipação pela redenção divina.
Este paradoxo nos parece incompreensível, porém Zizek nos dá alguns exemplos;
Imagine uma criança que possui um pai autoritário e que a obriga a visitar a avó doente agindo tal como a sua natureza, autoritariamente, esta criança segundo a interpretação do autor possui uma probabilidade muito maior de rebelar-se contra a ordem do pai mesmo que futuramente.
Agora imagine outra situação na qual essa mesma criança possui um pai amoroso e dedicado, o famigerado pai pós-moderno que a diz o seguinte; “ Sua avó está muito doente, você deveria ir visita-la , mas não quero lhe obrigar a nada, faça como achar melhor”. Necessariamente esta criança está condenada.
Aqui estamos lidando com o âmbito da liberdade interna desta criança que no primeiro caso apesar do autoritarismo declarado se mantém preservada, já no segundo caso há uma supressão total da sua liberdade interna . Ou seja diante de uma suposta opção de livre escolha há um autoritarismo muito mais forte que o chamado autoritarismo declarado, submetendo-a não só ao que deve fazer mas ao que deve querer fazer ( moralismo kantiano).
Outro exemplo hilário e curioso que nos é dado no livro “como ler lacan” é referente a um paciente que é diagnosticado com um distúrbio psicológico pelo fato de achar que é uma ervilha, ou um grão qualquer, este homem é curado e convencido a crer que é realmente um homem, ao ser liberado antes de chegar a porta este paciente volta correndo assustado, perguntam-no o motivo , ele responde, há uma galinha na porta do hospital, indagado pelo fato de ter sido supostamente curado e saber que não é um grão, este homem responde; — Sei que não sou um grão, mas e a galinha sabe?
Isso nos remete a noção psicanalítica de conhecimento do outro ou seja não é suficiente levar o paciente a compreender que há algo que permeia seu inconsciente acerca de uma verdade de seu diagnóstico mas sim seria necessário levar o inconsciente a absorver esta “verdade” .
Se não foi o suficiente para esclarecer a questão usarei outro exemplo contido neste livro, o do fetichismo da mercadoria, que pode ser refletida a partir deste texto de Marx;
Uma mercadoria parece à primeira vista uma coisa extremamente óbvia, trivial. Mas sua análise revela que ela é algo de muito complicado, abundando em sutilezas metafísicas e refinamentos teológicos.
O Capital-Crítica da Economia Política- Karl Marx Livro Primeiro: O processo de produção do capital Primeira Seção: Mercadoria e dinheiro Primeiro capítulo. A mercadoria O carácter de feitiço da mercadoria e o seu segredo.
Marx aqui diferentemente do pensamento iluminista não entende que uma análise de perspectiva critica possa fazer emergir um entendimento de que um produto ou mercadoria. Mas sim analisando a mercadoria utilizada enquanto fruto de um processo teológico bizarro, que seria apenas criação de um processo comum da vida real e material, que reverberaria no seu contrario( negação das suas determinações materiais)deste determinado objeto comum, colocando contra a parede a suposta iluminação do pensamento crítico iluminista , revelando assim as nuances metafísicas e teológicas contidas neste processo material de alienação e fetichização da mercadoria.
Ou seja o que queremos dizer é que a partir de uma leitura lacaniana feita por Zizek e que por mais que entendamos que a mercadoria não é necessariamente um objeto mágico, que pode nos redimir perante quaisquer adversidade da vida real, e ele mesmo é fruto desta vida real dos processos de relações sociais, nosso inconsciente parece não assimilar isso de fato.
E o exemplo que o autor dá nos remete ao exemplo anterior da galinha e do paciente psiquiátrico que pensava ser uma semente, e o paciente aqui seria alguém de mentalidade necessariamente burguesa ( entenda, mentalidade burguesa e não necessariamente burguês, apesar de ser algo predominante enquanto termo geral) a critica que supostamente um anti-burguês raiz faria não seria baseada em uma acusação da divinização metafisica da mercadoria e mostrar que aquilo é fruto de relações e imputações sociais por parte de uma mentalidade predominantemente burguesa, mas sim que realmente apesar de o discurso de alguém com esse tipo de mentalidade entender e repetir que realmente compreende que essa fetichização da mercadoria é um produto de relações sociais, não é assim que age entrando em contato com esses produtos, ou seja age sacralizando-os.
Dito isto usando o exemplo do homem e da galinha poderíamos dar outro significado a esta relação dual, enquanto burguês e mercadoria, ou seja se o perguntarmos( o burguês)sobre o fato dele compreender que o fetiche da mercadoria é fruto de um produto social ele dirá que sim, que compreende, mas nos perguntará, será que a mercadoria que estamos lidando o sabe? Adentraremos a partir daqui uma última abordagem do texto de Zizek que relaciona nesta mesma perspectiva lacaniana através de uma carta escrita sobre Kafka para chegarmos em Dostoievski.
Acima de tudo, coisas como dinheiro, bolsa de valores, a administração da moeda estrangeira, máquina de escrever, são para ele totalmente enigmáticas (o que efetivamente são, apenas não para nós, os outros).
Milena Jesenka sobre kafka — Como ler lacan- Slavoj zizek
Aqui o que Jesenka perante essa descrição de Kafka representa é o pano de fundo para que possamos adentrar na parte final deste texto que remete a obra Bóbok de Dostoievski. Zizek afirma que essa possível veia marxiana em Kafka seria delegada a uma suposta “excentricidade teológica” ou seja uma capacidade de analisar no que consiste acreditar naquilo que inconscientemente não se crê, ou o contrario, analisar isto que se permeia nos nossos atuais costumes herdados do período moderno, a necessidade de representar um ceticismo, um certo desleixo até para com nossas crenças publicas propositalmente enquanto permanecemos aprisionados internamente a elas.
Começo a ver e ouvir umas coisas estranhas. Não são propriamente vozes, mas é como se estivesse alguém ao lado: “Bobók, bobók, bobók!”. Que bobók é esse? Preciso me divertir. Saí para me divertir, acabei num enterro
Bóbok- Dostoievski
Bóbok é um livro que conta a historia de uma personagem que assiste ao seu próprio funeral, Dostoievski aqui nesta narrativa aborda uma possível contradição diante daquilo que quer representar e o que deixa transparecer.
A personagem principal aqui descobre que a consciência sobrevive ao menos algum tempo após a morte, ao menos até a decomposição do corpo físico.
Ele se mantém a uma certa distância de seu próprio funeral, posteriormente se aproxima ao permanecer no cemitério das outras “ almas frívolas “ que ali estavam, ao descobrir que ainda tem esses “meses de vida” diante da aproximação através do diálogo com outros “ mortos” lhe é sugerido que aproveite esse tempo e que não se envergonhe de nada.
O principal são os dois ou três meses de vida e, no fim das contas, bobók. Sugiro que nós todos passemos esses dois meses da maneira mais agradável possível, e para tanto todos nos organizemos em outras bases. Senhores! Proponho que não nos envergonhemos de nada.
Bóbok- Dostoievski
Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na Terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história. Eu, sabe, sou dos sensuais. Lá em cima tudo isso estava preso por cordas podres. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos! — Dispamo-nos, dispamo-nos! — gritaram em coro.
Bóbok- Dostoievski
Após esses dois momentos de vislumbre, é dito a personagem principal que serão revelados os segredos mais vis desses que estão mortos mas ainda possuem uma sobrevida, porém ele espirra e toda esta “ alucinação “ desaparece, no que então consistiria essa representação? Seria tudo um delírio? O que há de comum com toda nossa explanação até o momento? Considerado o maior interprete de Dostoievski que já existiu até então, Bakhtin interpreta esse conto como algo de muita representação enquanto entendimento da máxima mais conhecida e atribuída a Dostoievski “ Se Deus não existisse tudo seria permitido "e nesse caso também não poderíamos pressupor uma imortalidade da alma, pois seria absurdo! Nesse mundo irreal criado em bobók entre duas mortes, todo e qualquer pudor regra ou sanção estaria suspensa.
Ainda diante desta interpretação, esta situação absurda de mortos-vivos pressupõe um paralelo entre a noção freudiana descrita em um dos sonhos de seus pacientes, no qual o pai morto não sabia estar morto, aqui diferentemente os mortos sabem que estão mortos, logo nessa situação o fato de estarem plenamente conscientes de uma ausência divina para Bahktin é que lhes faz serem completamente alheios a quaisquer regra moral.
Porém há um problema nesta tese interpretativa de Bakhtin, que segredos tão terríveis esses mortos teriam para contar que não teriam contado? Será que o cessar desta “ realidade” justamente no momento que os revelariam não seria demasiado conveniente?
Ou ainda será que não seria um delírio de um Escritor-leitor necessariamente religioso amedrontado? Pressupondo a religiosidade de Dostoievski e a interpretação de que esses mortos estivessem sendo mantidos vivos por uma “ intervenção divina” não seria demasiadamente contraditório afirmar que isso seria um argumento a favor da máxima “ Se Deus não existisse tudo seria permitido”?
Na realidade seria justamente porque Deus existe que necessariamente estas personagens podem fazer o que bem entendem, justamente por superarem uma primeira morte e sobrevida sustentada por Deus, e ao momento que isso se torna uma ilusão, já não é mais possível transgredir regras.
Em suma entendemos que o mundo representativo criado por Dostoievski para diagnosticar a possibilidade de um mundo ateu no qual a inexistência de Deus os fariam ser desenfreados é fruto de uma projeção reversa reprimida da própria religião e ele o deixa transparecer aqui em sua narrativa.
Entendamos aqui justamente o que foi abordado desde o inicio do texto, ou este tipo representativo de “Deus tirano” na realidade pode servir para nos absolver da vergonha de fazermos o que quisermos e depois pedirmos perdão para continuarmos sendo igualmente tiranos, ou seja, uma mascara moral e o fato de representarmos um ateísmo convicto proveniente da modernidade, que supostamente nos deveria livrar de regras morais mais rígidas como afirmou Dostoievski “ caso deus não exista " termina por nos fazer o contrário, pode terminar por nos tornar mais moralistas que o mais convicto dos fundamentalistas religiosos no sentido estrito.