Nietzsche; fisiopsicologia e ressentimento
Aqui temos a pretensão de produzir uma análise da possível relação entre a análise fisiológica em Nietzsche dentro do contexto da genealogia da moral e o conceito de ressentimento, tentaremos entender como podem se relacionar estes conceitos.
O aspecto fisiológico irá gerar certa polêmica interpretativa em torno da filosofia de Nietzsche principalmente entre seus críticos, não há de se negar que Nietzsche leve em consideração os aspectos fisiológicos para tratar de questões fundamentais relacionadas ao comportamento “moral” do homem e na verdade diante de tudo aquilo que se relacione ao mesmo, porém de um modo geral a seu ver os sintomas fisiológicos se dão a partir de variações também psicológicas ( que não deixam de ser fisiológicas) ou ainda fisiopisicológicas, diante de representações do forte e do fraco, mas diante desta interpelação há um obscurantismo evidente quando se totaliza este contexto fisiológico a um tipo de eugenia totalitária e excludente que se delimite a determinadas características sejam morais ou de constituição corpórea, que se associe a teorias sanitaristas de meados do século XIX.
Ao ironizar Sócrates em Crepúsculo dos ídolos Nietzsche deixa claro a sua acidez para com este tipo de definição que surgiria a nivel de exemplificação a partir de uma “fisiopsicologia” do comportamento criminoso suplantada por higienistas como Cesare Lombroso;
Os antropólogos que se dedicam à criminologia nos dizem que o tipo criminoso é feio; monstrum in fronte, monstrum in animo. E o criminoso é um decadente. Sócrates era um tipo criminoso?
Óbvio que Nietzsche está colocando em evidencia esta percepção para ironizar Sócrates e afirmar que do mesmo modo que há uma transição de uma intepretação moral a partir da gênese do crime tendo em vista os indivíduos e suas constituições biológicas para suas constituições morais de comportamentos já neste período no século XIX.
Esta contextualização do monstro moral será apropriada por Foucault inclusive em suas investigações sobre a anormalidade e posteriormente sobre as diferentes “ gêneses” da loucura.
No que concerne ao comparativo, Sócrates sofria rejeições no seu contexto social grego por não se encaixar nos padrões apolíneos tão exigentes naquela sociedade e logo era visto como monstro.
Surge aqui um caráter duplo da crítica no que condiz a sociedade grega daquele período citado em Crepúsculo dos ídolos, que tendiam por se afirmar através de padrões predominantemente apolíneos, esta critica já surge inclusive em o nascimento da tragédia( período que Nietzsche ainda não tinha se desgarrado de Schopenhauer). Podemos vislumbrar aqui que já neste período cultural grego ao qual Sócrates pertencia havia uma determinada separação entre os aspectos lineares considerados racionais, simétricos ( aos quais Sócrates não se enquadrava) e os aspectos da desmedida ou corpóreos ao qual Sócrates era imputado, porém a vingança socrática foi ainda mais perversa.
Quanto a Sócrates, este se via odioso a vida por não ser integrado a estes padrões. Mas Sócrates foi astuto e utilizou de uma subversão moral própria, que se daria a partir de uma constituição malograda perante a vida que se valeria da criação de um além mundo, que serviria de padrão para negar este, que serviria para aquela sociedade como valor superior a ser afirmado por todos aqueles que se identificassem com este ódio a vida.
Eis que surge a partir de um cerne principal a relação da afirmação do corpo em Nietzsche como aspecto afirmativo da saúde fisiológica, que vai nos trazer um tipo de filosofia que se propõe a negar todos os valores possivelmente transcendentes. O tipo de fisiologia que Nietzsche vai apresentar vai se manifestar de alguns modos durante o decorrer de sua obra, por vezes ao se referir a uma ciência da fisiologia na Alemanha e na França ,disciplina que a sua época estava em evidência.
Entretanto a fisiologia em sua obra também aparece como uma constituição somática dos seres vivos, ou seja, no sentido do imediato corpóreo , de acordo com este preceito poderemos entender o fisiológico enquanto relativo a uma unidade orgânica e ainda averiguar o termo no sentido de um tipo de vida que pode ser compreendida como saudável ou como doentia a partir da negação ou afirmação das nuances valorativas da vida que se pergunta pelo valor dos valores aplicados a ela mesma.
Desta feita a fisiologia nietzscheana não se relaciona com algum tipo de característica inata ou biológica que priorizaria determinadas “ noções de raça” como superiores. Neste sentido aceitar diluir esta cosmovisão na afirmação do organismo como um todo manifestado para um modo de vida saudável colocaria por terra a afirmação de que o pensamento de Nietzsche consideraria estratificações sociais, raciais ou biológicas como determinantes dentro do contexto de sua crítica a moral dos fracos e fortes
Fazendo um paralelo com a cultura vigente trago um um trecho de Assim Falou Zaratustra que aborda uma reflexão de acordo com uma possível interpretação que nos possibilitaria rir destas contradições dualistas impostas por uma moral que pretende colocar-se para além da vida ela mesma.
Aos desprezadores do corpo desejo falar. Eles não devem aprender e ensinar diferentemente, mas apenas dizer adeus a seu próprio corpo — e, assim, emudecer. “Corpo sou eu e alma” — assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças? Mas o desperto, o sabedor, diz: corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo. Corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão(Nietzsche-Assim falava Zaratustra)
A fisiologia para a biologia assim como para o senso comum trata de aspectos ligados a características genéticas herdadas, assim como de certo modo em Nietzsche, porém sua filosofia obviamente não se resume a isto, no contexto da filosofia do nosso pensador, a fisiologia pode se entender como um processo orgânico do corpo humano que agrupa diversas condições e expressões no terreno das experiências vitais; nestes termos, a noção de “fisiologia” está ligada a vários processos do organismo como um todo e engloba os instintos e a vitalidade, incluindo os aspectos físicos e psicológicos, esta fisiologia em Nietzsche inclusive se apresenta segundo seu diagnóstico como manifesto das construções culturais de um povo e de determinados costumes de uma época sempre em um certo tom de suspeita.
Com relação ao nosso problema, que por bons motivos pode ser chamado um problema silencioso, e que de maneira exigente se dirige a bem poucos ouvidos, é de interesse nada pequeno constatar que, nas palavras e raízes que designam o “bom”, transparece ainda com frequência a nuance cardeal pela qual os nobres se sentiam homens de categoria superior.. (NIETZSCHE, 2012. p. 26).
Deste modo esta fisiologia que se manifesta em um tipo de construção comportamental metafisica e cultural que disponibiliza ferramentas para justificar posicionamentos sociais e políticos por “moralmente” infectados, por um tipo de niilismo que prefere acreditar no nada de que em nada acreditar, afirmando esse nada baseado na negação do outro como detentor destas forças ativas, o entendendo como algo diferente das minhas características que são consideradas boas e justamente o que acaba por determinar um modo de agir moral que se pretende único.
A partir disso surgem as classificações do que se pode considerar mau ou bom, bom e ruim, seja através do surgimento da chamada moral de senhor e da moral de escravos ( já anunciada em Hegel)disseminando estas visões em sistemas coletivos morais fixos.
Detalhando este contexto pressupomos então que o senhor possui um tipo de ação irrefletida a partir de si pois pode se dar ao luxo para tal( de acordo com determinada manifestação histórica)e se afirma como bom pois predomina e vê o escravo como alguém que é distante de si nas ações e nas suas possibilidades, por isso é mau e denominando como tal, através de uma determinação de caráter traçada pelo destino, já os considerados fracos mesmo que ainda não estejam necessariamente escravizados psicologicamente, entretanto já antecipadamente sofrem com a atitude irrefletida do senhor através de sua moral impositiva, como consequência deste sofrimento os escravos ou fracos aderem um tipo de racionalidade a sua visão de mundo e em relação a visão de mundo do senhor ou seja ressignificam, isso despertará naquele que tem a suposta “moral de senhor” a necessidade de justificar o comportamento opressivo e desta necessidade de reação, aí surge outro pressuposto moral a partir do senhor se pautando na seguinte questão; cada qual cativa pra si aquilo que lhe é merecido, se procuras ser fraco pois só podes o ser jamais poderás atrair algo de diferente para si.
A moral escrava se aproveitando deste pretexto faz surgir uma transvaloração dos valores daquilo que pode ser considerado bom ou mau, o escravo necessita gritantemente desta opressão ou determinação de caráter dos senhores sobre si para poder projetar seu ressentimento através de um subterfúgio e usar a estagnação ou inação como algo de superior e assim se afirmarem com veemência de forma mais perversa ; nós os fracos somos bons e vocês são maus pois nos oprimem e isso nos garante uma identidade diferente daqueles aos quais buscamos superar, isso nos faz superiores por sermos incapazes de reagir e ao mesmo tempo nos faz reagir de forma ainda mais sorrateira.
Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam, realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: ‘é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!’…” — Nietzsche, Genealogia da Moral, 3a. parte, §14.
Dito tudo isto no que consiste o ressentimento? Se trata de sentir algo que já ocorreu e que retorna ao nosso sentir? O entendendo nestes termos o poderíamos considerar algo pejorativo? Será nos escritos de Duhring que Nietzsche achará pretextos para elaborar sua crítica ao modo de se comportar ressentido onde o próprio Duhring trabalha noções ligadas ao surgimento da designada justiça, partindo desta ideia ele entendia que a justiça teria sua origem em um sentimento de vingança ou um tipo de nivelamento entre os seres sociais e de forma mecânica ou autômata.
Posteriormente Nietzsche ao se deparar com as reflexões psicológicas de Dostoievski vai expandir esta noção de ressentimento entendendo que o ressentimento pode sim ser utilizado não como um movimento mecânico, mas como um tipo de má digestão psíquica que pode se tornar como um tipo dispepsia de ordem criativa desembocando no alvo de seu apontamento.
Nietzsche entende que há vontade de potência ( vontade de expansão e de afirmação sobre o mundo)em todo tipo de comportamento moral sobretudo na moral ressentida.
Se pudéssemos falar em algum tipo de determinação do homem essa se daria através do jogo de poder no sentido de se afirmar como pode se afirmar sobre o mundo, através daquilo que Nietzsche chamará de vontade de potência presente em qualquer organismo vivo, daí surgirá a crítica controversa de Heidegger afirmando que a noção de vontade de potência seria um tipo de ontologia, mas isto é questão para outro texto, até breve.