Nietzsche entre a misoginia e o feminismo.
Inscreva-se no nosso canal
pix; gapfilosofico@gmail.com
Inscreva-se no nosso canal
De antemão aviso que não possuo pretensão alguma de falar em nome do feminismo ou de quaisquer vertente feminista. Este texto tem por caráter identificar ou ao menos tentar constatar o paradoxo que há dentro da filosofia de Nietzsche referente a figura do feminino e seus desdobramentos em vertentes politicas feministas a partir de leitura feita do livro de Ashley woodward - Nietzscheanism.
Incontestavelmente há passagens misóginas que perpassam algumas das principais obras do autor, todavia identificaremos que mesmo com esta carga que poderia afastar completamente o autor de quaisquer movimento considerado feminista, Nietzsche se torna referencia pra alguns movimentos feministas tanto de esquerda quanto de direita.
Porém não digamos que isso se deu de forma “pacifica” houve sim inicialmente e com razão uma ampla rejeição do autor por alguns movimentos considerados feministas na Alemanha e que de certo modo ainda permanece mesmo após a sua disseminação dentre as vertentes mais variadas deste movimento.
Entretanto no final do século XIX e começo do século XX verificaremos ao desenrolar do texto que houveram de certo modo “cedo” muitas tentativas de inserir Nietzsche na teoria feminista devido ao poder de sua filosofia enquanto ferramenta no feminismo alemão.
Dito isto, pretendemos aqui entender como a “transvaloração nietzscheana” pôde ser associada a vida tradicionalmente feminista daquele período, assim como suas noções em relação ao corpo e os afetos e também suas críticas radicais a uma suposta natureza da identidade humana.
Neste sentido os textos de Nietzsche se tornaram uma verdadeira caixa de ferramentas entre os mais diversos movimentos feministas daquela época. Sigamos; de inicio trataremos das passagens consideradas totalmente misóginas em Nietzsche para prosseguir para a segunda parte a análise que se dará no âmbito de apropriação dos movimentos feministas pela filosofia de Nietzsche.
1. Você vai ter com as mulheres? Não se esqueça do chicote!” (Z: “Das velhas e jovens mulherzinhas”,
2• “Ah, que perigoso, insinuante, subterrâneo bichinho de rapina! E tão agradável, além disso! […]. A mulher é indizivelmente mais malvada que o homem, também mais sagaz; a bondade na mulher é já uma forma de degeneração” (EH: “Por que escrevo tão bons livros”, 5).
3• “Foi ouvida a minha resposta à questão de como se cura — se ‘redime’ — uma mulher? Fazendo-lhe um filho. A mulher necessita de filhos, o homem é sempre somente o meio; Assim falava Zaratustra” (EH. “Por que escrevo tão bons livros”, 5). •
4 “Uma mulher quer ser mãe, e se ela não o deseja, ainda que possa, então ela pertence, como regra geral, a uma prisão” (Nota não publicada de 1885, citada em DIETHE, 2006: 302–303). •
5 “Quando uma mulher tem inclinações eruditas, geralmente há algo errado com sua sexualidade” (ABM 144). • “‘Emancipação da mulher’ — isso é o ódio instintivo da mulher que não vinga, ou seja, não procria, à mulher que vingou” (EH.“Por que escrevo tão bons livros”, 5).
6• “O perigo para o artista, para o gênio […] reside na mulher: adorar fêmeas é a causa de sua ruína. É difícil que alguém não tenha caráter suficiente para ser arruinado — ‘redimido’, quando ele sente ser tratado como um deus: — ele imediatamente condescende ao nível da mulher. — Um homem é um covarde diante de todo eterno-feminino: a mulher sabe disso. Em muitos casos do amor de uma mulher e talvez no mais famoso em particular, o amor é apenas um sutil parasitismo, um aninhar-se numa outra alma e ocasionalmente mesmo em uma outra carne — e, ah!, sempre às expensas do ‘hospedeiro’!” (CW 3)
Diante deste bombardeio de misoginia da pior espécie, uma das estratégias utilizadas por comentadores(as) para tentar driblar este aspecto é afirmar que estes textos são textos isolados e dispersos em suas obras, segundo Kaufmann (OLIVER & PEARSALL, 1998: 1)
Todavia nos parece que de certo modo se formos seguir o viés argumentativo inverso podemos verificar através do diagnostico de Nietzsche acerca dos cristãos entre as concepções de moral do senhor e de escravos uma certa conotação masculina sempre ao que tange a moral dos fortes e uma conotação pejorativa feminina ao que concerne a moral dos fracos ou dos cristãos, vejamos o que diz esta comentadora;
Nietzsche se identifica com a eterna verdade varonil e espera ansiosamente o dia em que toda a humanidade será varonil […]. Nietzsche nos ordena que sejamos “duros!” […]. Para Nietzsche, a impotência é o real inimigo da vida […]. Não surpreende que ele escolha o deus da fertilidade, Dioniso, cujos símbolos são o vinho cor de sangue e o falo intumescido para representar a força da vida. E repetidamente a vida degenerada é ilustrada em termos de castração, emasculação, afeminamento e impotência (OLIVER, 1995: 141).
Assim como em o anticristo, ele se refere diretamente aos cristãos como afeminados em oposição aos romanos, que eram os másculos e viris, que segundo ele sofreram uma corrupção moral por parte dos cristãos.
Dito isto, nos parece que Friedrich Nietzsche tinha um certo bloqueio referente ao contexto de liberação das mulheres mesmo que não admitisse diretamente.
Segundo (DIETHE, 2006: 89) esta misoginia presente em Nietzsche não pode ser compreendida simplesmente como um conservadorismo cego e autoritário, logo imbecil, ou seja, faz parte do contexto cultural que Nietzsche enquanto “ reacionário” do pensamento humano supõe querer resgatar o período helenístico.
Mas, as contradições nietzscheanas novamente ressurgem, apesar de todos os aspectos desfavoráveis em relação a seus discursos por hora abertos em relação as mulheres em seus textos, hora velados em forma de manifestação teórico-filosófica, Nietzsche era amplamente conhecido dentre as mulheres pelas quais convivia como um doce homem, como escreveu Diethe, “o homem da dinamite (como ele mesmo se descreveu à sua amiga judia, Helen Zimmern) não era nada mais nada menos do que um cavalheiro” (p. 302).
Não só isso, seus discursos destemperados referente as mulheres segundo elas mesmas não condiziam com suas atitudes,(o que não justifica nem apaga seus ataques textuais)tento escrito em oposição a educação superior e emancipação das mulheres, Nietzsche votou a favor disto e além, adorava estar em companhia destas mesmas mulheres liberais, as quais ele se opunha em seus escritos. Zimmern, uma de suas tradutoras para o inglês e também sua amiga pessoal, comentou a respeito de sua relação com o mesmo: “Certamente ele não usou o famoso chicote” (apud WININGER, 1998: 238).
Seria este comportamento dúbio de Nietzsche fruto de sua imaturidade e dificuldade de lidar com as mulheres? Era o que alguns supunham e achavam que isso logo passaria, o que não se tornou verossímil em sua vida.
Outro aspecto importante a ser ressaltado em suas obras são; os aspectos contraditórios de elogio as mulheres como nestes trechos;
Todas as coisas nas quais o cristianismo verte a sua insondável vulgaridade, a procriação, por exemplo, a mulher, o matrimônio, são aí tratados seriamente, com reverência, com amor e confiança […]. Não conheço livro em que se dizem tantas coisas delicadas e gentis às mulheres como no Código de Manu; esses velhuscos e santos têm um modo de serem amáveis com as mulheres que talvez não tenha sido superado.
“A boca de uma mulher” — diz outro trecho –, “o busto de uma garota, a oração de uma criança, a fumaça do sacrifício são sempre puros”.
Outro trecho : “nada existe mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e o respirar de uma garota”.
E nesta passagem — talvez também uma mentira sagrada –: “todas as aberturas do corpo acima do umbigo são puras, todas abaixo, impuras. Apenas na garota o corpo inteiro é puro” (Ant 56).
O que se torna aqui demasiadamente interessante nestas nuances do pensamento do autor é a capacidade e a possibilidade que Nietzsche tem de atrair o pensamento e movimento feminista devido seu antagonismo a filosofia tradicional, que está perpassada de menosprezo ao gênero feminino de forma tão radical, que por muitas vezes e por um costume internalizado já deixamos de notar.
Apesar de em certos aspectos manter ele mesmo estas considerações pejorativas de gênero, seu antagonismo a filosofias que estão enraizadas no pensamento ocidental como a filosofia platônica, que claramente tem um desprezo pelo feminino associando o mundo das ideias, que deve ser contemplado e buscado ao masculino e o mundo sensível que ocupa lugar secundário e digno de desprezo ao feminino, assim como seus escritos em “A República" que colocam a mulher em um local hierarquizado inferior, como em sua avaliação baseada em na influência órfica de “punição” ou castigo, por motivos de o individuo que fora designado a determinado fim não exercer ou buscar a sua “virtude”, em outra vida tender a ser punido e “rebaixado” a mulher por ter vivido mal *( *verificar reminiscência em Platão).
Isto para dizer o mínimo acerca do tradicionalismo da chamada filosofia oficial das academias.
Ao compreendermos a filosofia feminista de maneira mais geral, se faz fundamental examinar que feministas criticam a tradição filosófica, não apenas pelo motivo de exclusão total das mulheres, mas também porque as categorias fundamentais desta tradição são completamente permeadas por um viés de gênero.
Elencaremos aqui algumas subdivisões mais destacadas no feminismo nietzscheano e suas principais articuladoras;
A primeira fase do feminismo nietzscheano
Liberalismo burguês.
Estas feministas nietzscheanas defendiam mais direitos e melhores condições para as mulheres, incluindo acesso à educação superior, e combatiam o patriarcado da ordem existente. Contudo, elas apoiavam instituições sociais existentes, incluindo o casamento e o papel da mulher como dona de casa.
Nova Ética (Neue Ethik) Trata-se de um movimento associado à Liga para a Proteção das Mães, fundada em 1905. Elas acreditavam que o caminho autêntico para a autorrealização feminina passava pela maternidade, mas ao mesmo tempo chocaram as colegas feministas de então ao defenderem o amor livre e a maternidade fora do matrimônio.
Boêmias. As nietzscheanas boêmias radicais também defendiam e frequen- temente praticavam o amor livre, vendo o dionisíaco como um princípio de liberdade sexual. Diferentemente das defensoras da “Nova Ética”, porém, elas desenvolveram ideias radicais sobre a liberdade das mulheres em relação a instituições sociais, como a família, e a papéis sociais tradicionais, como esposa e mãe.
Essas três correntes distinguem-se entre si pelas visões que sustentam sobre a liberação sexual das mulheres e seus papéis sociais. Algumas primeiras feministas adaptaram a ideia nietzscheana do Übermensch para criar o ideal da “supermulher”
Principais feministas nietzscheanas
Dentre algumas das mais importantes figuras da primeira fase do feminismo nietzscheano contam-se Lily Braun, Helene Stöcker, Hedwig Dohm, Mary Wigman e Isadora Duncan.
Mostraremos aqui em conclusão três perspectivas divergentes de três comentadoras e filósofas, Kelly Oliver, Luce Irigaray e Sarah Kofman sobre a relação de Nietzsche a sua misoginia em contraponto a influencia sobre os movimentos feministas deste período já citado.
Kofman justifica que no transitar de suas obras Nietzsche não faz apenas uma única associação da imagem da mulher mas inúmeras, como por exemplo no contraponto que faz de Circe a Baubo, Circe estaria associada a uma imagem depreciativa da mulher que desencaminha o homem do caminho e do acesso a verdade, já a deusa Baubo seria a respectiva imagem feminina de um Dionísio feminino associada a um poder procriador, que afirma a vida, e a noção de eterno retorno . Baubo afirmaria o perspectivismo por meio de seus véus, que apenas escondem novos véus.
Irigaray compreende que o lugar de sujeito mulher foi negado durante todo o período do pensamento tradicional do ocidente e que ao mesmo tempo Nietzsche colaboraria para esta perpetuação, como por exemplo com sua ideia de eterno retorno .Entretanto o rompimento com a separação do discurso acadêmico da poesia, que corresponderiam aqui sucessivamente ao discurso masculino e feminino, subverte toda a lógica ocidental que se estruturou desde sempre.
Já Kelly Oliver afirma que apesar da abertura causada no pensamento tradicional ocidental causada pelo autor, ao mesmo tempo ele exclui as mulheres destes espaços. Mesmo que Nietzsche valorize o corpo, se trata de um corpo necessariamente masculino. Entende ainda que a misoginia contida em Nietzsche se manifesta de maneira abjeta, este modo hostil em relação ao maternal exclui de maneira majoritária o feminino de suas noções afirmativas, como a do Übermenschen, que seriam na visão da filósofa homens sem a necessidade do maternal, pois poderiam “ parir a si mesmos”.
Concluímos que sim Nietzsche era um misógino incurável e por inúmeras vezes permitiu que isso perpassasse sua filosofia de maneira nociva, entretanto seu pensamento enquanto entendimento pregado pelo mesmo como uma caixa de ferramentas e que tende a não se apegar a dogmas pode ser e foi utilizado inclusive como forma de combatividade a suas próprias reproduções herdadas do pensamento ocidental, necessariamente abarcadas por referencias negativas de gênero ao sexo feminino, mesmo que por vezes ele tenha demonstrado o contrário.
Entendemos aqui que apesar do caráter mais negativo e com razão da última filósofa e comentadora a Kelly Oliver que entende a filosofia herdada do nietzscheanismo como algo já contaminado por pressupostos e referenciais masculinos, compreendemos que há a possibilidade de redirecioná-la com novos “intuitos” baseados na própria noção de perspectivismo, como inclusive já foi utilizada anteriormente na descrição das outras duas comentadoras que apesar de tecerem duras criticas extraem algo de positivo do todo do pensamento de Nietzsche, cabe as mulheres e aos mais diversos movimentos feministas decidirem se vão se apropriar destas ferramentas ou não.
Referências
1980: Irigaray. A amante do mar de Friedrich Nietzsche
KELLY, K. (1994). Out of Control: The New Biology of Machines. Londres: Fourth Estate.
1972: O Colóquio Nietzsche hoje em Cerisy-la-Salle. Fundação do periódico Nietzsche-Studien. Kofman. Nietzsche e a metáfora.
KOFMAN, S. (1998). “Baubô: Theological Perversion and Fetishism”. In: OLIVER, K. & PEARSALL, M. (eds.) (1998). Feminist Interpretations of Friedrich Nietzsche. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, p. 21–49 [Trad. de T.B. Strong]. ______ (1993). Nietzsche and Metaphor. Stanford, CA: Stanford University Press [Trad. de D. Large].