O fazer artístico e a resistência anticolonial dos povos indígenas.

Gap Filosófico [Decodex)
8 min readOct 20, 2024

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Por Porakê Munduruku

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O fazer artístico e a resistência anticolonial dos povos indígenas.

Temos insistido que os fundamentos de um estar no mundo originário são a consciência de dois conceitos: Natureza e Ancestralidade. Ou, seja, a consciência dos vínculos indissolúveis que nos conectam tudo a nossa volta (que chamamos de Natureza); a consciência de nossos vínculos com as pessoas humanas que já viveram, que vivem e que viverão (que chamamos de Ancestralidade).

Assim, nada existe ou pode vir a existir que não seja Natureza. Ela é a própria realidade, não apenas todas as coisas que existem, mas também seus movimentos, suas capacidades e suas interações. Aquilo que se costuma chamar de “cultura” ou de “artificial”, não é mais do que a natureza não-humana transformada pela ação humana. E o mesmo se pode dizer do Trabalho. Em uma perspectiva originária, o Trabalho é a ação humana que transforma a natureza não-humana, ou seja, a realidade. Essa capacidade, em uma escala que nenhum outro ser vivente foi capaz, é o que diferencia essa parte da Natureza que chamamos de Humanidade.

Porém, o colonizador chama de “trabalho” a submissão dessa capacidade humana à necessidade de lucro ou de sobrevivência. E chama de “arte” sua libertação dos grilhões dessa coerção. O trabalho é a arte por obrigação, por necessidade, por sobrevivência. Enquanto a arte é o trabalho por desejo, por satisfação, por realização. O trabalho é arte encarcerada. A arte é trabalho livre e pleno. Por isso, a diferenciação entre trabalho e arte surge e é alimentada, nas sociedades coloniais. E é apenas em sociedades orientadas por um estar no mundo originário que trabalho e arte podem voltar a ser sinônimos.

É óbvio, contudo, que mesmo em sociedades coloniais, regidas pela fragmentação da humanidade em hierarquias como castas ou classes sociais, arte e trabalho estão em permanente tensão, como amantes determinados que, forçados à separação, insistem em buscar se reunir a todo custo. É esta tensão permanente o que explica o fato de que, muitas vezes, a arte é reduzida ao trabalho e seu produto à mera mercadoria, assim como, o produto despretensioso do trabalho também pode, eventualmente, ser elevado à genuína expressão artística. Como ocorre, por exemplo, com as megaproduções de Hollywood, que, embora sejam mercadorias de uma indústria multimilionária, controlada por homens de negócio gananciosos e sem qualquer compromisso artístico, por vezes demonstram genuína sensibilidade artística e apresentem reflexões relevantes, afinal, são também frutos dos esforços e dos anseios das pessoas humanas que as produziram.

Arte Indígena ou Artivismo Indígena?

Faz parte do estar no mundo do colonizador “dividir para conquistar” e tal separação quase sempre está a serviço de justificar a imposição de estruturas hierárquicas que mantêm o controle de uma elite sobre todos os demais. Na arte não é diferente.

A própria separação entre o fazer artístico e outros fazeres estabelece uma hierarquia que mantém o fazer artístico, ao mesmo tempo, como algo mais elevado e menos necessário que as demais atividades humanas. Assim, a arte nos é apresentada como um luxo, algo exclusivo para uma determinada parcela da humanidade e os artistas são também separados dos demais seres humanos com o distintivo de gênios, loucos ou vagabundos, muitas vezes tudo isso ao mesmo tempo. As separações entre “alta cultura” e “baixa cultura”, entre o artesanato nas bancas em praças e as instalações nos museus da Europa, entre a “arte indígena genuína” e suas “deturpações contemporâneas”, entre cultura e folclore seguem a mesma lógica de segregação e hierarquização que orienta as civilizações piramidais do colonizador: Dividir para conquistar, conquistar para saquear e apagar para encobrir seus saques.

Mas o estar no mundo originário, que se contrapõe ao colonizador, não é piramidal, é circular. Sem elites e sem privilégios, independente do continente. É civilização circular, onde não há ninguém no topo, nem na base, apenas a livre associação de seres livres, como ensinam a Natureza e a Ancestralidade. Não, nossos ancestrais não eram os Reis, Faraós ou Inkas do passado, eram aqueles a quem estes chamavam de bárbaros, selvagens e destinados à escravidão.

Um estar no mundo originário não separa o fazer artístico das outras formas de fazer. Os corpos que produzem a arte são os mesmos que produzem o alimento, o conhecimento, o acolhimento e a guerra. E ousar viver com a consciência de um pertencimento originário em um mundo moldado pela violência colonial é também assumir um compromisso com a ancestralidade e o coletivo. É se saber sujeito-coletivo e agente ativo da mudança diante das imposições coloniais que nos querem como meros objetos de estudo, do mercado, do fetiche sádico de quem se mostra incapaz de reconhecer no outro a si mesmo.

O Artivismo Indígena é a prática consciente de nosso estar no mundo ancestral, é o compromisso de se buscar a coerência entre um sentir e um agir originários, é o esforço consciente e a satisfação genuína de se buscar harmonizar o trabalho que nos é legado pela violência colonial e a fruição de exaltar e celebrar nossa ancestralidade originária. Daí, também, emerge o alerta e a vigilância para que não nos deixemos seduzir pela disposição do colonizador em alçar alguns entre nós ao altar dos “grandes artistas indígenas”, em detrimento de nosso próprio estar no mundo originário e de nossos compromissos com nossa luta ancestral em defesa da Natureza e da Ancestralidade, ou seja, de nossos interesses coletivos.

Mas as armadilhas do colonizador não se limitam à segregação do fazer artístico, à sua hierarquização e às tentativas de nos cooptar através da vaidade e do individualismo. Há outras prisões sem grades, ainda mais insidiosas, que nos são impostas e para as quais precisamos estar atentos.

O cativeiro estético-epistemológico.

No Brasil, a arte indigenista dos séculos XIX e XX, feita por não indígenas, cumpriu seu papel, não por provocar no povo brasileiro o orgulho de ser fruto da miscigenação entre indígenas e portugueses, mas por consolidar um mito fundacional da recém-nascida nação brasileira; como uma nação mestiça, suposto fruto do encontro, quase harmonioso, entre as três raças: o indígena, o negro e o branco.

O que ocultou, e ainda oculta, várias verdades incômodas: que raça é um conceito historicamente construído que não tem qualquer validade biológica; que as categorias “negros” e “indígenas” foram inventadas pelo colonizador para apagar e subjugar toda uma riquíssima diversidade de povos nativos, tanto de Abya Yala quanto de África; e que a identidade brasileira nos foi imposta com base em séculos de roubos, genocídios, torturas, estupros, sequestros, silenciamentos, conivências e omissões. Por tudo isso, segue sendo fundamental diferenciar a arte feita sobre os povos indígenas (arte indigenista), da arte feita por pessoas indígenas (arte indígena). Mais do que nunca, precisamos fazer ecoar nosso clamor ancestral: Nunca mais sobre nós, sem nós!

Contudo, mesmo tal clamor possui seus limites, para os quais precisamos estar atentos. Ser indígena não é atestado de caráter, nem de compromisso com nossas lutas coletivas. Indígenas são pessoas humanas, por mais que o colonizador relute em aceitar este fato, e como tal, somos diversos, complexos e, por vezes contraditórios.

Mesmo no campo das artes indígenas, há a arte indígena que se contenta com os temas e representações tidos como apropriados para pessoas indígenas, que pode ou não promover o protagonismo de um estar no mundo originário; e pode haver uma arte indígena que contesta este lugar demarcado para nossas presenças, embora isto tão pouco assegure o protagonismo de um estar no mundo originário. O mais comum é que tenhamos uma arte indígena protagonizada por pessoas indígenas que reproduz o estar no mundo do colonizador, mesmo sem nos darmos conta, afinal, estamos todos imersos na sociedade colonial e é sempre mais fácil seguir a correnteza do que nadar contra a corrente, mesmo quando há disposição para nadar.

A noção de “cativeiro estético” foi elaborada por pesquisadoras negras como Cíntia Guedes Braga e Tatiana Carvalho Costa para designar essa dificuldade que nós, povos racializados, encontramos para nos livrar dos limites demarcados pelo colonizador para nossas presenças. Pois o colonizador reserva para si mesmo a pretensão de universalidade e demarca para os demais povos o lugar do exotismo, dos estereótipos e dos “temas étnicos”.

Então, à atriz indígena cabe apenas os papéis de personagens indígenas ou periféricos, aos autores indígenas cabe abordar apenas temas indígenas. É apenas legítimo e apropriado que artivistas indígenas questionem tais limites, mas precisamos ir além. Para além de questionar o “cativeiro estético” que nos é imposto, precisamos questionar também nosso “cativeiro epistemológico”, exigindo nosso próprio direito à universalidade, o direito de abordar todo e qualquer tema ou tese a partir de nosso próprio estar no mundo originário.

Um exemplo emblemático desta realidade que questionamos são os limites impostos à produção audiovisual indígena e o discurso de que os documentários auto-etnográficos seriam a “tábua de salvação” para evitar que a “genuína cultura indígena” se perca para sempre diante do processo de aculturação que nos é imposto pelo colonizador. Me preocupa demais que este discurso pareça ser assimilado por muitos parentes, como se o cinema indígena estivesse fadado a produzir apenas documentários sobre “temáticas indígenas” para circular em festivais de nicho; ou como se os documentários, por si só, tivessem o poder de parar o tempo ou de deter a violência colonial. Eles não têm!

Mais de 300 diferentes povos indígenas resistem no Brasil mesmo após meio milênio de violência colonial incessante e isso foi graças à oralidade e graças a nossa própria luta de resistência, e não graças aos registros etnográficos, sejam eles em textos ou em audiovisual. Nunca precisamos de etnografias ou auto-etnografias para sobreviver, para isso precisamos apenas da consciência de quem somos e de onde viemos e de disposição para seguir lutando.

Na verdade, admitir que a produção de documentários que registrem o que é ser indígena para a posteridade é a única ou melhor maneira de assegurar nossa sobrevivência, significa admitir a imposição colonial de que os povos indígenas devem permanecer parados no tempo e que os registros, sejam escritos ou audiovisuais, são inerentemente superiores à oralidade. Ocorre, porém, que mesmo tais registros estão suscetíveis ao contexto histórico, político, econômico e cultural do momento de sua produção e estarão sempre suscetíveis à interpretação e aos vieses de quem tiver acesso a eles, hoje ou no futuro.

Nossos ancestrais não eram menos capazes do que os ancestrais do colonizador, eles também podiam ter desenvolvido uma linguagem escrita, apenas não sentiram a necessidade de fazê-lo. A escrita, aliás, surge historicamente em civilizações piramidais, divididas hierarquicamente em castas ou classes sociais, para permitir o controle do excedente de produção pela elite governante. Civilizações circulares mantiveram a oralidade originária também pela compreensão de que as culturas se transformam ao longo do tempo e é bom e necessário que seja assim, para a própria sobrevivência dessas culturas.

Não há problema algum em que artivistas indígenas se dediquem à produção de documentários auto-etnográficos. O problema é vincular este formato aos realizadores indígenas como algo esperado ou natural, seja pela falta de domínio que se espera que tenhamos da linguagem cinematográfica, seja pela falta de recursos para que possamos nos aventurar em outros formatos de produção artística em pé de igualdade com realizadores não indígenas, ou seja pela ideia preconceituosa de que registrar nossas praticas culturais em documentários é a única forma de assegurar a sobrevivência de nosso estar no mundo originário.

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