Sentir-pensar fractal; a escala planetária

Gap Filosófico [Decodex)
7 min readSep 15, 2024

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Denise Ferreira da Silva e Susanne M. Winterling

*Texto original: https://planetarysensing.com/fractal-sensing-thinking-on-a-planetary-scale/

SMW: Se não se importar, vamos começar com o conceito de “ética poética”. A base e o desenvolvimento desta linha que se encontra no seu trabalho e que, intuitivamente, é um imperativo que se liga aos nossos tempos. Talvez pudesse explicar, como introdução, de onde vêm estas ideias. A aparente oposição tem uma dinâmica e uma potencialidade que não é propriamente dialética, mas especulativa e realista. Como surgiu a ética poética? E, dada a discussão sobre expressão e informação, é possível usá-las como ponte?

DFS: É uma informação partilhada. A informação só faz sentido se for comunicável. Em “A ser anunciado: práxis radical ou conhecendo (nos) limites da justiça”[1] reviso argumentos que traçam o que reproduz tal violência, é uma reencenação da sujeição, de cenas de subjugação e escravização.

Saidiya Hartman[2] traça uma tal representação da sujeição, a exposição da violência do corpo negro para além da escravatura.

Fred Moten[3] assume uma posição diferente em relação à representação da cena de violência, sublinhando o facto de que, se olharmos para o som, para o grito da pessoa violada, abre-se a possibilidade de um sujeito, ou melhor, de um objeto que, em vez de responder à violência e de se colocar em oposição ao mestre hegeliano, se abre à possibilidade de outra coisa. Ele chama-lhe “a resistência do objeto”. E Lindon Barret[4] olha para a violência mais como um compromisso com o materialismo histórico.

No meu artigo, que não tem título e foi publicado como “A anunciar” porque foi o título que dei para a apresentação, e agora é o título. Ao escrever esse artigo, estabeleci uma conversa com os três. Através dessa conversa, o que eu quis realçar foi a dupla violação do corpo escravo negro e feminino. Recorro a diferentes tipos de filosofias, bem como à literatura negra e crítica, para ver não só a marca da impossibilidade de articulação do sujeito negro e feminino escravo, mas também aquilo a que poderíamos chamar o impasse das tentativas de articular esses corpos através dos discursos organizados pelos sujeitos modernos e pelos seus desejos.

No fundo, adoto uma equação que é pior do que aquela com que tenho vindo a trabalhar, porque se trata apenas de palavras. Mas, através dela, descubro que a violência contra o corpo negro é uma violência que pode ser explicada se olharmos para o funcionamento da categoria da negritude. Mas isso é outra coisa, no meio do corpo negro feminino duplamente violado, do corpo negro feminino escravo, pode haver uma direção para outra coisa. Pode ser que ele aponte para uma outra gramática, que não seja informada pelo sujeito moderno, que é a figura de certas formulações do desejo. Ou nas formulações do desejo no pensamento pós-iluminista.

Foi a partir daí que comecei a perguntar-me: e se…. O “e se” começou por aí. E se pudéssemos captar a violência, como as cenas de violência policial, sem nos referirmos à negritude como uma categoria através da qual a violência é sempre justificada, através da construção do sujeito negro ou da pessoa negra fundamentalmente violenta, mas sim ir atrás do excesso.

O que eu defendo refere-se ao “em si” da coisa como aquilo que não interessará ao conhecimento em termos de localização.

O aspecto feminista negro tem a ver com o excesso e com o distanciamento do sujeito enquanto coisa do desejo e, ao mesmo tempo, com a abertura, porque quando se vai atrás da coisa sem atenção à essência ou à relação, passa-se para o limite do pensamento moderno.

O meu interesse por esta questão não é um interesse na sua essência, mas em tudo o que também poderia ser conhecido se o conhecimento moderno não se tivesse limitado da forma como o fez. Tendo chegado a este ponto, sou principalmente atraído pela minha formação académica na tradição estruturalista e pós-estruturalista francesa. De qualquer modo, longe do sujeito consciente de si mesmo, abre a possibilidade de colocar questões diferentes. Questões pertinentes que permitiriam, por exemplo, na minha área de interesse, uma teorização crítica da brutalidade jurídica e política, não apenas através de um exercício crítico centrado nos fundamentos e bases dessa violência, mas através de um outro tipo de exploração que nos poderia levar para longe daí.

O poético surge nesse preciso momento. Não se trata tanto de uma oposição, mas de uma pergunta: e se também nós, no movimento da crítica, antecipássemos e atendêssemos ao exercício criativo como se tivéssemos os dois movimentos ao mesmo tempo. Por um lado, a crítica da violência e, ao mesmo tempo, a atenção à possibilidade de re-imaginar o mundo de forma a podermos dissolver os “fatos” que criam categorias raciais, bem como a escrita de certas pessoas e lugares, como violentos. No caso do meu trabalho, as pessoas negras, mas também espaços, entendidos fundamentalmente como violentos. Ser capaz de ir ao mesmo tempo através das categorias, até aos seus fundamentos e para além deles. Para além das formas e categorias das puras intuições kantianas e do espírito hegeliano, para além de todos os conceitos sociológicos que informam a forma como nos relacionamos com o mundo.

Assim, o poético é sempre um sinalizador da relação, a insistência de que a violência está ligada à categoria tem de ser avaliada. Mas, ao mesmo tempo, é um convite a considerar o mundo como outra coisa. O poético, a poiesis, remete para a possibilidade do que já está presente no excesso de violência para…

SMW: Como é que relaciona tudo isto com o “pensamento fractal”, que eu relaciono com fractais como os padrões romanos e imagens de máquinas para máquinas? Isto leva-nos à codificação e a um mundo como o de Octavia Butler ou Donna Haraway, onde estamos envolvidos com ciborgues e criaturas porque estamos ligados a eles e somos parcialmente eles.

Digamos que o “e se”, o pensamento poético e o pensamento fractal podem ser uma saída para a violência sistémica na repetição e reprodução de padrões binários. Os padrões binários de violência e discriminação que podemos testemunhar na ecologia, bem como na raça e no género.

O que mais me surpreende enquanto artista é a forma como inevitavelmente nos envolve com uma complexidade irremediável. Incluindo a quarta dimensão, porque agora só falámos de localidade, também é interessante a temporalidade e a quarta dimensão. Podias falar da quarta dimensão: é diferente da singularidade, que por sua vez é diferente da particularidade. Talvez pudesses dizer um pouco mais sobre a razão pela qual a singularidade é diferente da possibilidade ou também diferente do acontecimento. Isto faz sentido? (O fim da frase?

DFS: Tudo faz sentido, embora seja muito. Mas faz todo o sentido. Eu vou, já disse à Susanne, vou responder às vossas perguntas, mas não vou resolvê-las. Agora já percebem o que se está a passar [risos]. Resposta número um, que pode ou não abranger a maior parte da pergunta.

O pensamento fractal faz parte do exercício “e se”. E, mais uma vez, tem esses dois momentos: o pensamento fractal e o pensamento poético. Os exercícios que faço são uma tentativa de, talvez, colapsar o criativo e o crítico, reconhecendo afirmações ou acontecimentos ou estados de coisas de uma forma que evita ficar preso na linearidade e na separabilidade que…. tudo o que está inscrito na forma da pergunta. Mas também nos termos utilizados para produzir a pergunta. Basicamente, a minha ideia é, em primeiro lugar, olhar para a situação tentando traçar aquilo a que chamo o acontecimento racial. Defino-os de forma breve, mas podemos abri-los, como acontecimentos de violência racial e momentos de violência racial em que podemos ver o excesso, e nestes casos o excesso é sempre em relação ao que é normalmente considerado eticamente aceitável ou legal. Em retrospectiva, estes eventos e exercícios que fiz são todos momentos históricos diferentes, e encontro elementos no discurso, mas também em estruturas legais, económicas e simbólicas que se repetem. E esta é uma tentativa de interromper narrativas de violência racial, que incluem a crise dos refugiados, histórias recentes que ou fazem parte de um processo histórico, pelo que se espera que simplesmente aconteçam. Ou então interrupções de um processo histórico, pelo que não deveriam acontecer. Ou ainda que estes acontecimentos ocorrem por causa daqueles que estiveram envolvidos e daqueles que foram efetivamente feridos em tais situações, o que significa que a culpa é deles. É precisamente porque foram eles que criaram esta situação, da mesma forma que a encontramos na crise dos refugiados e na islamofobia: “são terroristas”, “vêm para nos fazer mal”; é por isso que são colocados em tais posições. Até mesmo em declarações sobre a “economia dos refugiados”: “eles vêm para cá e levam a nossa riqueza, é por isso que são colocados nessa posição”. O pensamento fractal é um convite a complexificar tais situações, posicionando-as em longas durações[5], tanto em momentos históricos como no momento global, a fim de identificar os processos, as estruturas e os discursos jurídicos e económicos em jogo nessa situação. Um aspecto é, evidentemente, a atenção à singularidade, ao acontecimento singular, à “crise dos refugiados”, por exemplo, a fim de localizar um tipo particular de repetição, uma repetição que tem de ser interrompida. Assim, a composição fractal é o posicionamento de todos esses momentos diferentes no tempo e no espaço que fazem parte do mesmo contexto. A imagem dialética de Walter Benjamin é a minha fonte de inspiração para isto. Nesse sentido, é uma composição, ou decomposição, consoante a possibilidade de interromper o discurso, filosófico, histórico, sociológico, antropológico, etc., que de outra forma permitiria a apresentação de uma situação que está sempre a justificar a violência, colocando-a nos sujeitos da violência ou fazendo dela algo que vem do passado para os perseguir, sem acabar por pertencer aqui. Portanto, esta é uma forma de falar do pensamento fractal. [6]

[1] Social Text, Volume 31, Número1 (114), 2013.Ver en: https://read.dukeupress.edu/social-text/article-abstract/31/1%20(114)/43/33743/To-Be-AnnouncedRadical-Praxis-or-Knowing-at-the

[2] Saidiya Hartman, Cenas de Sujeição: Terror, Escravidão e Autoconstrução na América do Século XIX (Raça e Cultura Americana), Oxford University Press 1997.

[3] Fred Moten, No intervalo: a estética da tradição radical negra, JSTOR 2003.

[4] Lindon Barrett, Negritude e Valor: Vendo Double, Cambridge University Press 2009.

[5] https://es.wikipedia.org/wiki/Larga_duraci%C3%B3n_(historiograf%C3%ADa)

[6] Cf. Denise Ferreira da Silva, Pensamento Fractal https://accessions.org/article2/fractal-thinking/

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