UMA NARRATIVA UMBILICAL E O DESEJO EM SUSPENSÃO

Gap Filosófico [Decodex)
5 min readJan 8, 2024

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AN UMBILICAL NARRATIVE AND THE DESIRE IN SUSPENSION

Por; Professor Dr. Yvisson Gomes

Nossos anseios são pedidos extraviados que se direcionam para um objeto qualquer, mas precisam ser de desejo. Ao bordejarmos o objeto desejante, precisamos entender que a Psicanálise cumpre seu papel ao retratar, tal como uma imagem insofismável, a presença espectral do desejo no sujeito. Quem deseja, inevitavelmente, sente falta. Essa célebre palavra invariável — falta (advérbio) –, pode transformar-se em verbo: faltar (ação e movimento). Eu sinto falta, tu sentes falta… nós sentimos falta. Talvez um enunciado gritante, a saber: falamos para mostrar que nossa estranheza é faltante.

Ora, Platão, aquele de ombros largos, ilustrou em seu Banquete as missivas da falta. Logo voltamos ao termo desejo em sua etimologia!

Os seres andróginos, do cômico Aristófanes, eram completos, mas foram cindidos. Zeus, em sua magnitude espiritual, tramava sua continuidade de poder sobre os gregos e deidades da Hélade. Porém, a trama direcionada aos andróginos era de maior quilate. Um trio existia desde o nascimento das narrativas gregas. Homem e homem, mulher e mulher e, por fim, homem e mulher. Zeus os decepou ao meio — cindiu, separou e exasperou-se num ato trágico para proteger seu reinado. Hefestos, a divindade da metalurgia, fez o trabalho sujo — o umbigo.

Os anseios de Zeus se alimentavam de manter o seu poderio, pois esses seres míticos, inevitavelmente, conjuravam palavras contrárias ao poderoso deus. Essa ótica, em avesso, não escondia também uma trama pérfida desses seres circulares contra o senhor do Olimpo.

Com Platão, em seu Banquete, não restavam dúvidas que os seres circulares iam digladiar-se com a deidade dos raios. Uma historieta interessante. Estamos tramando e costurando esse diálogo frente ao discurso platônico com o freudiano (salvem a lembrança!). De fato, tais criaturas foram cortadas ao meio, como uma téssera complementar, suturadas e restando somente o umbigo como sinal dessa cirurgia mítica. Eles se cindiram e apontam, até hoje, qualquer um à sua frente em busca da sua metade na busca de uma firmeza cosmogônica da inteireza.

– Piedade, Zeus! Faz-me encontrar o território de meu amado querido.

Restou o umbigo para dizer: a cicatriz lembra a falta, contudo, algo foi emancipando-se durante as gerações humanas por conta da trama malsucedida que projetou a civilização organizada, talvez, uma tautologia. Se estou incompleto, rezo porque estou em falta e construo edificações para ornar essa ausência disforme, quase barroca, a qual chamamos de cultura. Mesmo sabendo disso, desejo me sentir único com meu consorte, ou como o Hamlet em sua investigação subjetiva diria sobre si mesmo:“what do you think of it?”

Imaginem as rendeiras fiando na urdidura seu objeto/arte de sustento, um labor comum de ribeirinhas. A partir daí, sairá um objeto artístico de algo possivelmente acabado. Mas, graças aos deuses, o fiar sempre será uma criatura/criação endereçada a alguém, não a quem a rendou. Necessariamente, há o Outro (deixemos essa anedota a distantes anoiteceres).

– Vamos comprar uma peça de bilro e fazer nossa costura?

As peças podem ser adquiridas em qualquer lugar, numa cidadela humilde, por exemplo, mas a costura e sua crueza de finalização nunca haverá — algo ficou suspenso no idealismo platônico que carregamos desde o século V a.C.

Daí se aproxima o desejo — palavra que dança com o olhar direcionado para os céus. É algo inatingível e sideral (desiderato), em sua etimologia. Mas desejo esse algo que conheço, sendo desconhecido — um retorno do recalcado entrecruzando-se com o Infamiliar, de Freud.

Com tal afecção, posso ir à lua, imergir aos mares sombrios do Oceano Pacífico, descosturar o enredo de Penélope na Odisseia, escrever um poema chistoso e chorar ao seu final, mas, em hipótese alguma, completar-me nisto que faço e já fiz como tecelagem entrelaçada de fios com nós, com um ponto e vírgula, travessões esguias ou uma metáfora agonizante para uma teleologia em incompletude — tal como um veludo ciselé em suas escamas difusas.

Freud alcançava esse momento humano. Falamos de momento, pois sempre nos lembramos de construção e desconstrução. De reviravoltas e voltas. De lançar-se ao extremo do mundo e retornar à caserna com pão e mel agradáveis. Somos desejosos. Somos marcados pela rapidez de um texto que fala seu contexto, ou seja, que fala sobre o olhar de um trovador frente à sua amada na insígnia da ausência — uma fartura de afetos que necessitamos para uma boa morte (um gozo — petit mort).

Sobre a morte, nada a dizer senão do destino humano que nela está contida — finitude. Um plus: imaginem a Pulsão de Morte, no momento da metapsicologia freudiana, como acesso ao inorgânico e um retorno inquietante ao nada. Nadificação é útero materno e a ele não voltaremos jamais.

Há quem queira voltar. Nossos sintomas nos pedem isso: voltemos ao único e concluído — ao acabamento do desejo, se possível for. Hermes, o mensageiro, mandou me dizer que eu escolhesse você para assumir meu desejo, contudo sei que não haverá êxito.

O thânatos que tenho saúda o thânatos da neurose que tu tens! Somente isso: por hora, somos uma árvore com ascendência duvidosa, mas com descendentes precisos e palpáveis na poética das enunciações (salvou-se algo, o umbigo-palavra!). Estamos no orbe do desejo e das ladainhas das incelências que podemos cantarolar ao nosso desejo e, logo mais, perdê-lo — pois ele sempre será deslizante e fugidio.

Um espirro! Alguma coisa assim, mas passageiro e fim — fez-se necessário rimar.

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